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10 conceitos errados que você tinha sobre coronariopatia crônica e ninguém nunca te falou

No âmbito da coronariopatia crônica alguns conceitos são mal interpretados ao longo da nossa formação. Mesmo cardiologistas experientes possuem idéias distorcidas sobre situações comuns e, por isso, podem realizar condutas não embasadas a luz do conhecimento científico atual.

Apresentamos aqui algumas das quais consideramos importantes de conhecimento geral, sobretudo aos clínicos e cardiologistas em formação quando abordando doentes com doença coronária crônica:

1) Em um contexto de tratamento de re-estenose intra-stent surge a seguinte linha de pensamento:  ”  Uma vez que esse paciente teve estenose intra-stent irei manter a dupla anti-agregação (DAPT) por tempo indeterminado a fim de evitar esse complicação”

Não confunda alhos com bugalhos! Trombose é uma coisa e re-estenose é outra.  A trombose ocorre em uma fase precoce e está relacionada ao contato do stent em si, que funciona como um corpo estranho e gera inflamação local e aumento de reatividade plaquetária. O risco de trombose diminui a medida que ocorre a re-endotelização da superfície do stent, que leva em torno de 30 dias para o stent convencional e de 6-12 meses para os stents farmacológicos, sendo necessário cada vez menos tempo para as novas gerações de stent, alguns falando em 3 meses.

A re-estenose ocorre em um contexto de que a ‘inflamação’ gerada pelo corpo estranho intra-vascular pode cursar com uma re-endotelização anormal composta por uma hiperplasia neo-intimal de crescimento errôneo que pode levar a oclusão da luz do stent. Em geral, esse evento tende a ser mais tardio, de a 3 a 6 meses após a colocação do dispositivo.

Os mecanismos fisiopatológicos envolvidos são múltiplos e, muitas vezes, complementares  envolvendo diversos fatores dos quais destacamos:

1) Neoaterosclerose intra-stent  2) Participação de fibroblastos e das células de tecido muscular liso 3) Retração elástica da parede do vaso 4) Remodelamento geométrico constrictivo.

Finalizando:
– A recomendação de dupla anti-agregação plaquetária após a colocação de um stent é para se prevenir a trombose aguda e não para atuar na re-estenose.

Stent thrombosis and restenosis: what have we learned and where are we going? The Andreas Gru¨ntzig Lecture ESC 2014. European Heart Journal Advance Access published September 28, 2015 Disponível aqui

Byrne RA, Joner M, Alfonso F, Kastrati A. Treatment of in-stent restenosis. In: Bhatt DL, (ed.). Interventional Cardiology: A Companion to Braunwald‘s Heart Disease. Elsevier; 2015

2) ”Stents convencionais são mais seguros que stents farmacológicos em relação a desfecho de trombose aguda de stent, haja vista que a re-endotelização dos mesmos ocorrem mais rapidamente”

Existe uma idéia que o stent convencional ( bare-metal stent – BMS ) pode até não ser ‘melhor’ em relação aos stents farmacológicos (Drug-eluting stents – DES), mas são mais seguros. Uma metanálise publicada em 2015 no JACC vem para mostrar que esse conceito está errado.

Utilizando dados de 51 estudos que envolveram e torno de 52 mil doentes, observou-se que, para uma média de seguimento de 3,8 anos, todos os DES foram superiores aos BMS e, dentre os DES, os de segunda geração foram melhores que os de primeira em relação a desfechos de segurança e eficácia.

Long-Term Safety of Drug-Eluting and Bare-Metal Stents Evidence From a Comprehensive Network Meta-Analysis. VOL. 65, NO. 23, 2015 ª 2015 BY THE AMERICAN COLLEGE OF CARDIOLO GY FOUNDATION ISSN 0735-1097. Disponível aqui

3) ” Doutor, esse paciente tem angina típica a grandes esforços de início há 20 dias. Sendo assim, podemos considerar que ele é portador de Angina Instável. Vamos mandá-lo ao PS ?”

– Para considerarmos um doente com Angina Instável de início recente a sintomatologia do mesmo deve ser limitante. Sendo assim, angina aos grandes esforços, ou seja, CCS tipo I, mesmo que manifestada de há ‘pouco tempo’, deve ser interpretada no contexto da doença coronária crônica ou Angina Estável. Portanto, não iremos mandar esse doente ao PS. Se a dor convenceu iremos calcular a probabilidade pré-teste de doença coronariana baseado em variáveis que usem a idade, sexo e sintomas para definir seu diagnóstico e prognóstico. Contudo, isso será feito a nível ambulatorial. Veja mais aqui


4) ” Paciente que teve uma Síndrome Coronária Aguda sem supra do ST em 30 de agosto foi submetido a cirurgia de revascularização miocárdica (RVM) em 5 de setembro. Sendo assim, não precisa usar DAPT e basta manter o AAS em longo prazo, uma vez que ele já foi operado”
– A cirurgia de RVM trata apenas as lesões obstrutivas. Sendo assim, doença coronária aterosclerótica como um todo não é alvo dessa modalidade. Paciente que teve SCA com ou sem supra do ST deve receber DAPT por pelo menos 1 ano independente da modalidade terapêutica escolhida.

Secondary Prevention After Coronary Artery Bypass Graft Surgery A Scientific Statement From the American Heart Association. Circulation March 10, 2015 Disponível aqui

5) ”Esse indivíduo é coronariopata e diabético. Sendo assim, vamos submetê-lo a revascularização de maneira mais precoce, pois assim diminuiremos a taxa de eventos cardiovasculares, sobretudo morte e IAM”

Nos indivíduos portadores de diabetes sabe-se que há uma taxa maior de eventos cardiovasculares maiores e mortalidade. Será que nesses indivíduos uma estratégia inicial mais agressiva consegueria diminuir a mortalidade nesse cenário ?

O estudo BARI 2D avaliou 2368 indivíduos diabéticos coronariopatas (todos com registro angiográfico de lesão) para uma estratégia de revascularização inicial ( fosse por ICP ou RVM) + tratamento médico otimizado (TMO) x TMO. Obviamente, excluídas lesões de tronco de coronária, pacientes sintomáticos CCS III e IV ou que tivessem feito cirurgia de RVM ou ICP nos últimos 12 meses.

Lógico que os paciente inicialmente alocados para TMO poderiam ser submetidos a algum tipo de revascularização se houve piora dos sintomas clínicos ou síndrome coronariana aguda. De fato, esse ‘cross-over’ ocorreu em cerca de 40% dos pacientes, mas cerca de 60% dos doentes não tiveram necessidade de serem submetidos a procedimentos extras sem prejuízo em relação a seus desfechos clínicos.

A grande mensagem desse estudo em relação ao manejo da coronariopatia na população diabética foi: tentar um TMO inicialmente no paciente diabético e partir para revascularização apenas quando guiada por sintomas teve o mesmo efeito que já partir de cara para tratamento invasivo. Portanto, o tratamento clínico como primeira opção nesses grupos é aceitável.

A Randomized Trial of Therapies for Type 2 Diabetes and Coronary Artery Disease The BARI 2D Study Group*N Eng J Med 360;24 nejm.org june 11, 2009  Disponível aqui





6) ” Professor, mas o senhor vai deixar esse paciente SÓ em tratamento clínico? ”
A ÚNICA terapia que efetivamente trata a doença coronariana em toda sua extensão é o tratamento medicamentoso. Lembre-se: a revascularização, cirúrgica ou percutânea, trata apenas aquela(s) lesão (ões) específica(s) para(s) qual(is) se direciona. O uso já bem conceituado de AAS, estatinas e, quando indicados,  beta-bloqueadores e iECAS / BRA conseguem diminuir a mortalidade do doente. Alívio sintomático pode ser conseguindo com outras medicações adjuvantes, sobretudo bloqueadores de canais de cálcio, nitratos e novas opções no mercado que atuam no metabolismo celular, como a trimetazidina. Além disso, o tratamento médico otimizado ( TMO ) deve ser instituído para todos os pacientes.

Por isso, não pense que deixar o paciente em TMO é ‘não fazer nada pelo doente’. Muito pelo contrário, tratar a doença clinicamente requer acompanhamento cuidadoso e frequente, certamente de uma maneira mais próxima ao doente!

7) ” Doutor, este paciente tem doença arterial coronariana ( DAC ) estabelecida descoberta após um IAM há 6 anos. Função Ventricular boa. Sem angina. Queria colocar Atenolol para otimização medicamentosa, uma vez que todo ‘coronariopata’ precisa de BB para diminuir mortalidade”

– Os beta-bloqueadores só mostraram redução de mortalidade na doença coronária em dois cenários:

1) No período após infarto agudo do miocárdio e mesmo assim apenas nos primeiros anos. Em geral, o benefício é maior do uso no primeiro ano e extende-se até por volta do 3 ano. Após esse período, na ausência de angina ou outra indicação ao uso de beta-bloqueador, o mesmo poderia ser descontinuado.

2) Naqueles doentes em que há disfunção ventricular. Nessa situação, é indicação clássica do uso de beta-bloqueadores indefinidamente, a menos que haja contra-indicações.

Fora dessas indicações, o uso de beta-bloqueadores se faz útil no controle de sintomas anginosos. Sendo assim, o paciente ilustrado não é candidato ao uso de beta-bloqueador, seja para diminuir mortalidade ( IAM > 3 anos e sem disfunção ventricular ), tampouco para redução de sintomas, uma vez que não tem angina

2013 ESC guidelines on the management of stable coronary artery disease Disponível aqui

Beta Blocker Use After Acute Myocardial Infarction in the Patient with Normal Systolic Function: When is it “Ok” to Discontinue? Disponível aqui


8) ” Se a cintilografia deu negativa é porque ele não tem doença coronariana”

– Já abordamos a investigação da angina estável em outro post, mas nunca é demais relembrar. Antes de se pedir um teste para investigação de isquemia, deve-se considerar a probabilidade pré-teste do doente. Se a dor te convence e a probabilidade seja alta: > 85%, a ausência de alterações sugestivas de isquemia em uma prova não invasiva ( cintilografia, ecocardiograma ou teste ergométrico) não significa que o doente não tem doença coronariana, mas apenas que o acometimento coronariano é de baixo risco, ou seja, esse doente tem baixa probabilidade ( < 1%) de infarto ou morte em 1 ano.

Além disso, lembre que os testes não invasivos podem apresentar falsos negativos em relação a seu resultado. Sendo assim, sempre que for analisar um resultado de exame questione: ‘Será que consigo confiar nesse resultado ?’. Quando há dúvida em relação a qualidade do exame avalie a necessidade de um segundo exame mais contundente para lhe tirar a dúvida.

Com diria nosso chefe Dr Eduardo Lima, existe o ‘fardo do diagnóstico da DAC’. Quando coloco um #DAC na cabeçalho do prontuário desse paciente estou dizendo que ele ganhará AAS / Estatina e outras drogas voltadas para seu tratamento clínico, além de toda uma repercussão psicológica do ‘estigma de ser coronariano’.

Por isso nunca esqueça: teste de prova isquêmica negativa não significa ausência de doença coronária em todas as situações.

Observe na figura abaixo o algoritmo sugerido pelo ESC 2013. Note que os exames são pedidos conforme a probabilidade pré-teste do doente e sempre que se tiver dúvida, parte-se para uma segunda modalidade afim de complementar o exame prévio.

2013 ESC guidelines on the management of stable coronary artery disease Disponível aqui

9) ”Sempre indicamos procedimento de revascularização para que possamos diminuir a mortalidade dos doentes ”

– Há duas indicações para se indicar uma revascularização de um doente:

1) Para aumentar sua sobrevida ( melhorar prognóstico )
2) Para controle de sintomas, sem necessariamente ganho de sobrevida.

Sendo assim, tenha em mente qual é a indicação do seu procedimento. Em muitas situações, a sua intervenção irá proporcionar melhora de sintomas e ganho em qualidade de vida do seu doente, mas sem alteração em relação a mortalidade.

Indicar revascularização pra melhorar sintomas não é BOBAGEM! Lembre-se:o paciente não quer só viver mais, ele quer viver bem! 

Contudo, você deve saber qual ganho esperado com sua indicação para que possa argumentar ao doente os motivos que o levam a optar por determinada estratégia. Veja na tabela abaixo as principais recomendações sugeridas pelo ESC 2013.



2013 ESC guidelines on the management of stable coronary artery disease Disponível aqui


10) Quando decidindo junto a equipe qual melhor estratégia em relação ao uso de Circulação Extra-Corpórea na Cirurgia de RVM alguém solta a seguinte pérola: ” É melhor fazermos sem CEC, haja vista que ele é idoso e o uso de CEC aumento o risco de AVC”


Grandes estudos comparando cirurgias de RVM com e sem o uso de CEC são contundentes em mostrar que a taxa de AVC no trans e peri-operatório em curto e médio prazo é semelhante para as duas abordagens. Inclusive, o estudo MASS III, realizado no INCOR, seguiu um grupo de doentes e ao fim de 5 anos e não demostrou diferença entre os grupos para esse desfecho.

Um dos mais contudentes a esse respeito foi o estudo publicado pelo grupo GOP CABE em 2013 no NEJM, que comparou apenas indivíduos idosos maiores de 75 anos submetidos a Cirurgia de RVM com x sem CEC e não mostrou diferenças em relação a AVC em 30 dias e 12 meses de seguimento.

Obviamente, situações onde observa-se uma aorta ascendente extremamente calcificada, quando optado por cirurgia, deve-se preferir a modalidade sem CEC.

Off-Pump or On-Pump Coronary-Artery Bypass Grafting at 30 Days.N Eng J Med  366;16 april 19, 2012. CORONARY groups Disponível aqui

Effects of Off-Pump and On-Pump Coronary-Artery Bypass Grafting at 1 Year. N Eng J Med  368;13 march 28, 2013 Disponível aqui

Off-Pump versus On-Pump Coronary-Artery Bypass Grafting in Elderly Patients. N Eng J Med  368;13 march 28, 2013. GOP CABE Stuby Group Disponível aqui

Five-Year Follow-Up of a Randomized Comparison Between Off-Pump and On-Pump Stable Multivessel Coronary Artery Bypass Grafting. The MASS III Trial Disponível aqui

Sobre o Autor

Daniel Valente

Médico com residência médica em Clínica Médica pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e em Cardiologia Clínica pelo Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (InCor-HC-FMUSP). Especialista em Ecocardiografia pelo InCor-HC-FMUSP e pelo Departamento de Imagem Cardiovascular da Sociedade Brasileira de Cardiologia (DIC-SBC). Doutor em Cardiologia pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). Coordenador do Serviço de Ecocardiografia da ONE Laudos.

1 comentário

  • Excelente post. De fato, grande parte das condutas equivocadas são decorrentes da má compreensão de conceitos básicos da fisiopatologia da aterosclerose, bem como do desconhecimento dos grandes trial que geraram a evidência. Muitos até "ouviram falar" em alguma conduta específica, mas não sabem de onde ela surgiu, nem quando, nem porque… Vou sugerir a leitura deste post para as turmas que entrarem no estágio no Núcleo de Doença Coronária!

    Eduardo Lima

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