Cardiologia Geral

Aumento de marcadores de necrose miocárdica após CVES: posso atribuir isso apenas ao efeito do choque?

Paciente de 68 anos evoluiu durante a internação com quadro de dor torácica típica em contexto de um quadro de fibrilação atrial. Por instabilidade, foi realizada cardioversão elétrica sincronizada (CVES) no doente.
Resolveram seriar marcadores necrose miocárdica desse doente e virão que, após o episódio, os valores de Troponina I aumentaram de 0,02 (valor basal) para 0,80 -> 1,14 -> 2,5 -> 2,0 -> 1,4  ng/ml. O valor de referência de percentil 99 do kit utilizado é de 0,04 ng/ml.
Foi então solicitada interconsulta da cardiologia para responder a seguinte dúvida: essa elevação de marcadores não poderia ter sido apenas secundário ao ‘dano miocárdico’ relacionado a corrente elétrica da cardioversão?
Essa questão é muito pertinente e já foi alvo de alguns estudos, inclusives nacionais, abordando a variação da marcadores de necrose miocárdica após CVES.
Marcadores de dano muscular inespecíficos como CPK, mioglobina e a própria CKMB podem alterar após a CVES refletindo o dano a musculatura esquelética torácica comum após o ‘choque elétrico’. Contudo, a troponina I, marcador específico de dano miocárdico, não se eleva habitualmente após CVES. Nos raros casos em que o faz, atinge valores apenas discretamente acima do valor considerado da normalidade do kit utilizado. 
Isso mostrou-se inclusive com doses cumulativas de até 920 J em estudo de Santos, ES e cols, de 2006.

Em estudo polonês de 2007 com apenas 22 pacientes mostrou-se que pode até haver discreto aumento de troponina I após CVES, mas sem maior relevância clínica. 

Portanto, essa curva de troponina I NÃO se justifica como efeito de CVES e deve ser feita busca por outras causas de lesão miocárdica, sobretudo doença coronária aguda!
Resumindo
1) CVES não causa injúria miocárdica importante, quando o faz, apenas em discretíssima alteração de troponina I 
2) Não se recomenda que sejam dosados MNM de rotina após CVES
3) Em caso de elevação de MNM em paciente que por algum motivo necessitou de CVES, sobretudo as não-planejadas, como o caso acima, deve-se pesquisar ativamente outras causas de dano miocárdico, principalmente doença coronária aguda!
Leitura sugerida
Santos, EL e cols. Cardioversão Elétrica e Lesão Miocárdica:
Avaliação pelos Novos Marcadores de Injúria
Cardíaca. Arquivos Brasileiros de Cardiologia – Volume 86, Nº 3, Março 2006. Disponível aqui

Piechota, W e cols. Cardiac troponin I after external electrical cardioversion
for atrial fibrillation as a marker of myocardial injury
– a preliminary report. Kardiologia Polska 2007; 65: 6

Sobre o Autor

Daniel Valente

Médico com residência médica em Clínica Médica pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e em Cardiologia Clínica pelo Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (InCor-HC-FMUSP). Especialista em Ecocardiografia pelo InCor-HC-FMUSP e pelo Departamento de Imagem Cardiovascular da Sociedade Brasileira de Cardiologia (DIC-SBC). Doutor em Cardiologia pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). Coordenador do Serviço de Ecocardiografia da ONE Laudos.

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