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Medicina perioperatória: Bridge trial – cirurgias em pacientes usando Varfarina por FA: preciso fazer ponte de heparina sempre ?

É prática comum no dia-a-dia do cardiologista ser procurado por pacientes com indicação cirúrgica para que este façam a sua ‘liberação’.
Muitos desses pacientes fazem uso de medicações que necessitam de um manejo especializado no período peri-operatório. Nesse quesito, o uso de medicamentos dito anticoagulantes, como a Varfarina Sódica – um inibidor da ação de vitamina K – é relativamente comum em cardiopatas portadores de fibrilação atrial.

Portanto, o manejo do anticoagulante no peri-operatório é um grande desafio, haja vista que temos de balancear o risco de sangramento importante no intra e no pós operatório x o risco de algum eventro trombótico – por exemplo, um AVCi – se deixarmos o paciente excessivamente descoberto da sua anticoagulação.

A prática atual consiste, de maneira geral, em se suspender a varfarina alguns dias ante do procedimento – habitualmente de 3 a 5 dias- e dosar o INR 24-48 horas antes da cirurgia. Quando o valor cair abaixo de 2,0, iniciamos a heparinização em dose plena preferencialmente com Heparinas de Baixo Peso Molecular – p.e. a enoxeparina – e a suspendemos 12h antes do procedimento. Após a cirurgia, quando a avaliação do cirurgião é de que o sangramento já está controlado e não há maiores riscos ao doente – retorna-se a anticoagulação com enoxeparina e varfarina como de maneira habitual até que se possa interromper a dose de enoxeparina. Essa estratégia é denominada de PONTE DE HEPARINA ( veja como executá-la aqui )
Mas será que a realização de enoxeparina seria melhor do que a simples interrupção do varfarina quando paciente candidato a fazer um cirurgia ou procedimento invasivo ?
Foi pensando nisso que o grupo BRIGDE investigators idealizou um estudo de não-inferioridade para comparar a estratégia de realizar PONTE DE HEPARINA x SUSPENSÃO DA VARFARINA sem uso de ponte.
O trabalho, publicado no New England Journal of Medicine, em agosto/2015, sob o título ‘Perioperative Bridging Anticoagulation
in Patients with Atrial Fibrillation’, foi pensando em um contexto de que 1 a cada 6 pacientes com FA e em uso de Varfarina serão submetidos a algum tipo de procedimento cirúrgico e na dúvida de que se essa medida seria necessária em todos os grupos de pacientes.
DESENHO DO ESTUDO: Prospectivo, randomizado, duplo cego e controlado pelo uso de placebo
POPULAÇÃO ALVO: Portadores de Fibrilação Atrial em Anticoagulação com Varfarina
CENTROS: 1884 pacientes de 108 centros dos Estados Unidos e Canadá
DURAÇÃO: 2009 – 2014
DROGA UTILIZADA PARA PONTE DE HEPARINA: Dalteparina – a empresa fabricante apenas fez a doação da medicação, sem outras participações no estudo.
CRITÉRIOS DE INCLUSÃO:
 > 18 anos
Portadores de Fibrilação ou Flutter atrial permanentes ou paroxístico confirmados por ECG ou por dados de interrogação de marcapasso
Pacientes com FA associados a valvopatia mitral também foram abertos a inclusão
Estar na faixa de INR entre 2-3 e em uso de Varfarina por pelo menos 3 meses
Pelo menos 1 fator do CHADS: Insuficiência Cardíaca, Hipertensão, Idade > 75 anos, Diabetes ou AVC prévio ou embolia sistêmica prévia
CRITÉRIOS DE EXCLUSÃO:
Prótese Valvar MECÂNICA
AVCi, Ataque Isquêmico Transitório ( AIT) ou Embolia sistêmica há menos de 3 meses
Sangramento maior nas últimas 6 meses
Clearance de Creatinina < 30 ml/min/m2
Plaquetopenia < 100 mil
Neurocirurgia ou cirurgia intraespinhal programada
Chamamos a atenção que foram excluídos os indivíduos que são considerados como alto risco de evento trombótico. Sendo assim, lembre-se que para essa população o estudo não tem validade.
DIAGRAMA DO ESTUDO

Como demonstra o gráfico, os pacientes tinham a Varfarina suspensa 5 dias antes da data prevista do procecimento. Com 3 dias, iniciava-se a dose de dalteraprina no grupo PONTE e placebo no grupo sem ponte. 1 dia antes do procedimento era dosado o INR. Se maior que 1,8, era feito vitamina K via oral, se entre 1,5-1,8 a vitamina K era opcional. Logo após o procedimento, de 12-24h, a varfarina era reiniciada e, se considerado de baixo risco de sangramento, a dalterapina também. Caso considerado um risco maior de sangramento, deixava-se para reiniciar a dalteparina com 48-72 h. A dalterapina era mantida até que o INR ficasse acima de 2,0, o que acontecia na maior parte do tempo após 5-10 dias.
Os pacientes foram acompanhados até 37 dias do dia da cirurgia.
DESFECHO PRIMÁRIO DE EFICÁCIA: ocorrência de AVC (isquêmico ou hemorrágico) , AIT, embolismo arterial ou venoso
DESFECHO PRIMÁRIO DE SEGURANÇA: sangramento maior
A tabela 1 nesse tipo de estudo serve para que conheçamos quem é que são nossos pacientes. Chama a atenção o fato de termos uma mediana da CHADS relativamente baixa – de 2,3 e só 3% dos pacientes ficam entre 5-6, que são justamente os que tem maior risco de eventos trombóticos.
Como mostra a tabela acima em relação ao desfecho primário vemos que:
– tromboembolismo arterial ficou uma taxa de 3 pacientes (0,3%)  no grupo PONTE x  4 pacientes – 0,4% no SEM PONTE com um Intervalo de Confiança – 95% 0,6-0,8, P = 0,73 
– taxa de sangramento maior: 29 pacientes ( 3,2%) no grupo PONTE x 12 pacientes (1,3%) no SEM PONTE com Risco Relativo (RR) 0,41; IC 95% 0,2 – 0,78 ,  P= 0,05
– Não houve eventos fatal
Em relação aos desfechos secundários:
– 187 ( 20,9%) no grupo PONTE x 110 pacientes ( 12%) no grupo SEM PONTE apresentaram sangramento menor em 30 dias. P =< 0,001
Não houve diferença estatística em relação a:
– IAM
– TVP
– TEP
– Morte
Algumas críticas ficam em relação ao estudo:

– O poder do estudo foi recalculado durante o desenvolvimento do trabalho
– Pacientes submetidos a cirurgias de maior risco de tromboembolismo arterial (p,e endarterectomia de carótica, cirurgias oncológicas maiores, cirurgias cardíacas e neurocirurgias) não foram incluidos.
– A maioria dos pacientes foi submetidos a procedimentos considerados com baixo risco de sangramento
– Não ficou claro qual a porcentagem de pacientes tinham FA,Flutter paroxístico x permamente.
– Não ficou claro como foi a decisão dos investigadores sobre a manutenção ou suspensão de AAS.
Mensagem final:

– Apesar de suas limitações, o estudo, no geral, foi bem conduzido.

– O que fica claro é que pacientes de baixo risco ( sem prótese mecânica, CHADS baixos,..) não se beneficiam do uso da ponte com heparina e poderiam operar apenas com a suspensão da Varfarina.

– Uma extrapolação para pacientes de alto risco (que não foram incluídos no estudos), em cirurgias de alto risco ( que também não foram incluídas) não deve ser feita. Esses ainda devem ser submetidos a procedimento na vigência da ‘ponte de heparina’.

– Apesar disso, boa parte dos doentes do dia-a-dia são de baixo risco e que irão para cirurgias de pequeno/moderado porte e poderiam ficar sem necessidade de usar a ponte.
– Deve haver, nas atualizações das diretrizes de cuidados perioperatórios nacionais e internacionais, mudanças em relação ao que foi mostrado nesse estudo.
Tabela utilizada pelo estudo estratificando risco de sangramento associado a cirurgia.


Leitura sugerida:


Douketis, JD e cols. Perioperative Bridging Anticoagulation
in Patients with Atrial Fibrillation. n engl j med 373;9 nejm.org August 27, 2015. Disponível  aqui
Apêndice suplementar do estudo. Disponível: aqui

Perioperative management of patients receiving anticoagulants. Acessado em out2015 em Uptodate. Disponível aqui

Sobre o Autor

Daniel Valente

Médico com residência médica em Clínica Médica pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e em Cardiologia Clínica pelo Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (InCor-HC-FMUSP). Especialista em Ecocardiografia pelo InCor-HC-FMUSP e pelo Departamento de Imagem Cardiovascular da Sociedade Brasileira de Cardiologia (DIC-SBC). Doutor em Cardiologia pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). Coordenador do Serviço de Ecocardiografia da ONE Laudos.

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