Cardiologia Geral

Perguntas e Respostas: Estatina e o tecido muscular esquelético – Interface com a Reumatologia

Por Felipe Mendonça de Santana*
Não faltam adjetivos para definir
a literatura sobre o acometimento muscular da estatina: vasta, heterogênea,
divergente, enfim, confusa. Nomenclaturas várias são encontradas, com nomes
iguais para cenários diferentes, e nomes diferentes definindo cenários iguais.
Abaixo, seguem alguns ponto-chaves no assunto:
1) Como nomear o acometimento
muscular da estatina ?
Optei por iniciar com este tópico,
pois ao longo do texto utilizaremos os termos definidos nesta sessão.
A nomenclatura é confusa e ainda pouco sedimentada. Segundo o NLA Task Force on Statin Safety – 2014
update
, o termo genérico recomendado seria “Efeito adverso muscular
associado à estatina”. Todos os outros termos, incluindo Miopatia por estatina,
representariam manifestações específicas da nosologia. Abaixo segue uma tabela
do Task Force com as principais definições:
Concordemos que o termo “Efeito
adverso muscular associado à estatina” não é nada prático, e dificilmente será
reproduzido em um cabeçalho de prontuário, ou mesmo repetidamente em um texto
qualquer. Encontramos de forma recorrente na literatura o termo Miopatia por
estatina definindo todo o espectro de lesão, o que não é recomendado pelo Task Force.
A partir deste momento,
utilizaremos, por motivos práticos e por falta de algo melhor, o termo
Miotoxicidade por estatina como sinônimo de “Efeito adverso muscular à
estatina”.

2) Quão comum é a miotoxicidade por estatina?
Na prática clínica, é frequente
vermos pacientes com queixas musculares e/ou alterações laboratoriais  em enzimas musculares em uso de estatina.
Relatos clínicos sugerem incidência entre 10 a 25%. A maior metanálise no
assunto, entretanto, mostrou apenas uma tendência
estatística
no aumento de problemas musculares com estatina em relação ao
placebo. Eis, aqui, nova divergência.
3) Qual a fisiopatogenia da lesão
muscular?
Inúmeras são as teorias e um
mecanismo único não explica todos os quadros clínicos. Mais frequentemente
cita-se a redução dos níveis de Coenzima Q10 (ou Ubiquinona), o que
comprometeria a produção energética celular. A Coenzima Q10 é uma substância do
tipo benzoquinona, presente nas mitocôndrias, que participa na cadeira
transportadora de elétrons, sendo fundamental para respiração celular aeróbica.
Existem estudos que corroboram a hipótese, e estudos que a refutam. Outro
mecanismo possível, porém mais raro, seria o desenvolvimento de auto-imunidade,
com necrose de fibras musculares imuno-mediada, cujo gatilho seria a estatina.
Na literatura, vários outros mecanismos são citados.
4) Qual a clínica da
miotoxicidade por estatina?
Quase sempre o quadro clínico
envolve uma combinação variada de dor (mialgia) e/ou fraqueza (miopatia). O
acometimento é predominantemente proximal e simétrico, mas quadros atípicos são
descritos. Em 2/3 dos casos, os sintomas surgem em até 6 meses do início do
uso, porém há relatos de casos iniciados após 4 anos. Elevação da
creatinokinase (CK) pode ou não estar presente. Menos comumente a miotoxicidade
pode se apresentar com elevação aguda e intensa da CK, com mioglobinúria e/ou
lesão renal, definindo um quadro de rabdomiólise.  Esta é um evento raro com o uso da estatina,
com incidência menor que 0,5%.
5) Existem pacientes mais
susceptíveis à miotoxicidade por estatina?
Sim. Pacientes com doenças
neuromusculares prévias, doença renal aguda ou crônica, hipotireoidismo e
doença hepática colestática apresentam maior incidência. O uso concomitante de
drogas inibidoras do Citocromo CYP3A4 e/ou drogas com potencial intrínseco de
miopatia também aumentam o risco. No primeiro grupo, destacam-se a
ciclosporina, os macrolídeos, os bloqueadores dos canais de cálcio
(particularmente os não-diidropiridínicos), a amiodarona, alguns antifúngicos
azoles (p.ex cetoconazol) e inibidores da protease (p.ex ritonavir, indinavir
etc). No segundo, temos os glicocorticoides, os fibratos e a colchicina.
6) Existem diferenças, entre as
estatinas, quanto ao potencial miotóxico?
Sim. Fluvastatina e pravastatina
parecem ser as mais seguras, o que tem sido demonstrando tanto em estudos
populacionais como in vitro. O grande
contraponto é que ambas são estatinas menos potentes. Caso potência seja um
fator limitante e o preço não seja algo que limite seu paciente, deve-se dar
preferência a rosuvastatina e a pitavastatina.
7) Em quanto tempo espera-se a
resolução do quadro após a suspensão da droga?
                A
resolução dos sintomas e da elevação de CK, quando presente, costuma ocorrer em
dias a semanas. A média de tempo para a resolução dos sintomas é de 2- 3 meses,
sendo que em torno de 90% estarão assintomáticos dentro de 6 meses. Casos que se
mantenham sintomáticos além deste período, particularmente quando associados a
elevação persistente da CK, devem ser investigados para Miopatia Necrosante
Auto-imune induzida pela estatina, que é uma complicação rara caracterizada por
um processo necrosante persistente e progressivo, imuno-mediado, cujo gatilho
frequentemente é o uso da estatina. Suspeita-se principalmente quando frente a
um caso de miotoxicidade persistente após suspensão da droga, e cujo
comportamento clínico lembra o de uma Miopatia Inflamatória Idiopática (p.ex
Dermatomiosite e Polimiosite). A chave para o diagnóstico é a biópsia muscular
(com necrose de fibras, com pouca inflamação) e a presenta de auto-anticorpos
específicos (Anti-HMG-CoA redutase). O tratamento, diferentemente dos outros
quadros de miotoxicidade, além da suspensão do fármaco, envolve
imunossupressão.
Leitura sugerida:
– Jacobson, TA. NLA Task Force on Statin Safety – 2014
update. Journal of Clinical Lipidology (2014) 8, S1–S4
– Rosenson RS, Baker SK. Statin myopathy. In: Uptodate. Jul 10, 2015. Acessado
em 12/09/15
– Ganga HV, Slim HB, Thompson PD. A systematic review of statin-induced muscle
problems in clinical trials. Am Heart J. 2014 Jul;168(1):6-15
 * Graduado em Medicina pela Universidade Federal de Pernambuco. Médico com residência em Clínica Médica pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). Atualmente é residente em Reumatologia pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP)

Sobre o Autor

Daniel Valente

Médico com residência médica em Clínica Médica pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e em Cardiologia Clínica pelo Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (InCor-HC-FMUSP). Especialista em Ecocardiografia pelo InCor-HC-FMUSP e pelo Departamento de Imagem Cardiovascular da Sociedade Brasileira de Cardiologia (DIC-SBC). Doutor em Cardiologia pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). Coordenador do Serviço de Ecocardiografia da ONE Laudos.

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