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PVC e a pré-carga: estabelecendo conceitos e desfazendo mitos

Na rotina de uma equipe médica de medicina intensiva é comum observarmos a aplicação da Pressão Venosa Central como um indicador de pré-carga do ventrículo esquerdo, indicador de volemia e útil para avaliação da resposta a volume. Mas será que a PVC consegue de fato representar tudo isso ? Este artigo visa desmistificar um pouco a PVC e estabelecer conceitos de fisiologia cardiovascular fundamentais para a prática diária dos cardiologistas/intensivistas
1) O que é PVC ( Pressão Venosa Central)? Como estimá-la?
A PVC é a medida da pressão venosa na veia cava superior próxima a entrada do átrio direito, como não existe nenhuma válvula entre o AD e a cava, as pressões da cava e o do átrio devem ser a mesmas. Ela pode ser medida diretamente ( com passagem de catéter venoso central ou Swan-Ganz) ou através da coluna de sangue em pacientes com estase jugular ( paciente em DDH a 45 graus, mede-se a altura da coluna de sangue até o angulo de Louis e soma-se a 5cm – estes 5 cm foram obtidos através de estudos tomográficos que evidenciaram que a distância vertical média entre o ângulo de Louis e o AD é de 5 cm)
2) O que é pré-carga ? Qual sua relação com a Lei de Frank-Starling?

Assumindo que o coração seja considera uma unidade com entrada no AD e saída na Aorta, a Pré-carga pode ser definida como a força final que distende as fibras musculares antes da sístole do VD ou a tensão ao qual o VD está submetido ao final da diástole. O conceito de tensão envolve além da pressão dentro do VE o seu raio e a espessura da sua parede (Lei de La Place)
Lei de La Place: Tensão = Pressão X Raio / 2 X espessura da parede
Quanto maior a distensão das fibras musculares antes da sístole maior sera a força contrátil e consequentemente o débito cardíaco, assumindo que as outros fatores que alterem o DC não mudem concomitantemente. Este é o princípio de Frank-Starling e que pode ser resumido pela figura a seguir:
Princípio de Frank-Starling: note que a distensão das fibras musculares aumenta a tensão até uma dada tensão Lo, aonde a sobreposição das fibras de miosina/actina é ótima e partir daí perde-se tensão/força com o aumento  progressivo da distensão. Fonte: Magder. Understanding central venous pressure: not a preload index? 
3) Porque pré-carga não é igual a PVC?
Como elucidado no item 2, pré-carga é um conceito complexo que envolve além de pressão, o raio da parede (proporcional ao volume do ventrículo ) e a espessura da parede. A curva de pressão volume do ventrículo também ajuda a entender o porquê pressão não necessariamente corresponde a pré-carga: a curva de pressão x volume do ventrículo não é linear, com o ventrículo mais ‘cheio’ a pressão aumenta ( a curva não é linear mas sim linear-exponencial). Estudos com pacientes hígidos e internados em unidades de terapia intensiva não demonstram uma boa correlação entre PVC e volume diástolico final – portanto sem correlação entre PVC e pré-carga. 
Relação entre PVC e Diametro diastólico final do VE em pacientes internados em unidade de terapia intensiva. Note que não  há correlação entre PVC e o DDVE. Fonte: Sasai et all.  Reliability of central venous pressure to assess left
ventricular preload for fluid resuscitation in patients with septic shock.

Curva pressão x volume diástolico do VE. Note que na porção inicial a relação linear, porém com o aumento progressivo dos volumes a pressão sobe exponencialmente ( linha preta ), isto significa que o um dado aumento x de pressão aumenta em muito o volume na porção inicial da relação e quase nada na porção exponencial da relação. Note também que alterações das funções diástolicas do VE afetam a relação entre pressão e volume ( linhas amarelas) 
4) Problemas técnicos com a medida da PVC
– Aonde nivelar o transdutor 
– Mudanças de decúbito
– Ponto exato da curva para medida da pressão ( base da onda c de pressão venosa central) x pressão  média
– Relação com a respiração / pressão intra abdominal
5) Quais os determinantes da PVC
A PVC depende da interação entre o retorno venoso com a função cardíaca, sendo que a definição de função cardíaca é a capacidade do coração aumentar o débito cardíaco independentemente da pré-carga.  Por exemplo,  um paciente internado por IC descompensada em uma UTI por exemplo com uma PVC de 10, após a administração de vasodilatadores endovenosos ele melhora seu débito cardíaco ( pela diminuição da pós-carga) e consequentemente diminui a PVC para 6 – desta maneira o aumento da função cardíaco ( por aumento de contratilidade, diminuição da pós-carga ou aumento da FC ) também pode afetar a PVC. Sabendo que a função cardíaca é extremamente dinâmica, principalmente em pacientes internados em UTI com múltiplas disfunções orgânicas e uso de drogas vasoativas, um mesmo valor de PVC obtidos em momentos diferentes podem representar situações totalmente distintas com relação a volemia. Por isso, CUIDADO com a interpretação de VALORES PONTUAIS dessa medida. 

6) Volume estressado x não estressado dentro de um vaso sanguíneo
Em situações de repouso apenas 30% do volume de sangue dentro do vaso distende as paredes das veias gerando pressão que levam o retorno do sangue ao coração (volume estressado), os outros 70% apenas circundam os vasos e não distendem as paredes venosas  (volume não estressado que funciona como uma “reserva” de sangue).  Em uma situação em que muda-se a relação entre volume estressado / não estressado ( por exemplo aumento do tônus adrenérgico no sistema venoso) pode-se aumentar o retorno venoso levando a aumento do PVC sem modificação na quantidade total de sangue
Analogia do balde para volume estressado e não estressado. Imagine que todo o volume sanguíneo do território venoso está em um balde que tem um oríficio de saída. O volume estressado é aquele que está acima do oríficio de saída ( Vs) e o volume não estressado é aquele que está abaixo do orifício ( Vu). A PVC determina o fluxo de saída pois é a pressão exercida na saída do orifício de saída. A mudança entre a relação entre volume estressado e não estressado seria representado subindo  a altura ou abaixando a posição do orifício de saída ( subir a altura representaria uma diminuição do volume estressado e aumento do não estressado e abaixar o oposto). Fonte: Gelman et all. Venous function and central venous pressure
7) Porque a PVC não representa o retorno venoso
A PVC afeta o retorno venoso, mas ao contrário de um conceito ‘simplista’ que usualmente aprendemos no dia-a-dia a PVC na verdade é um limitante para o retorno venoso. O retorno venoso depende da pressão de enchimento circulatória média ( que é a pressão gerada pelo sangue do sistema arterial sendo encaminhado ao sistema venoso, inicialmente nas vênulas que é transmitida para as veias de médio calibre e depois para as grandes veias) MENOS a pressão venosa central, divida pela resistência venosa, ou seja, quanto MAIOR a pressão venosa central MENOR será o retorno venoso para uma mesma pressão de enchimento circulatório média.
8) Conclusão: como utilizar a PVC no dia-a-dia
– Tente sempre obter uma medida tecnicamente adequada: sempre zerar para pressão atmosférica, medir ao fim da expiração e preferencialmente em cima da onda c da curva de pulso venoso central, nivelar o transdutor 5cm abaixo do ângulo de Louis
– Valores absolutos de PVC só tem grande utilidade nos extremos: em raras situações uma PVC de 1-2 representará um paciente congesto e uma PVC de 16 ou mais representará um paciente hipovolêmico
– Siga as tendências do seu paciente, a avaliação repetida e seguimento da tendência dos valores de PVC fornece muito mais informações do que um valor isolado
– Não use os valores de PVC para guiar ‘teste de reposta a fluidos’
– Uma PVC normal não necessariamente significa euvolemia

Leitura sugerida:
1) Understanding central venous pressure: not a preload index ? 
2) Reliability of central venous pressure to assess left ventricular preload for fluid resuscitation in patients with septic shock
3) Venous function and central venous pressure
4) Does the Central Venous Pressure Predict Fluid
Responsiveness? An Updated Meta-Analysis
and a Plea for Some Common Sense

Sobre o Autor

Caio de Assis Moura Tavares

Graduado em Medicina pela Universidade de São Paulo. Médico com residência médica em Clínica Médica pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e em Cardiologia Clínica pelo Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (InCor-HC-FMUSP). Atualmente é médico assistente do Departamento de Cardiogeriatria do InCor-HC-FMUSP.

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