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Tatuagem e piercing em valvopata: o que recomendar ao paciente?

Fonte: https://pixabay.com/pt/tatuador-tatoo-desenho-556036/
Você está atendendo no ambulatório de válvula um paciente de 22 anos com sequela mitral de febre reumática, manifesta por uma estenose mitral leve, quando, próximo ao final da consulta, ele indaga:

 ”Doutor, posso fazer uma tatuagem?”
É sabido que as quebras de barreira, sobretudo em áreas de mucosa oral, podem levar a bacteremias que, por sua vez, ao encontrar um endocárdio danificado podem resultar no trágico quadro de endocardite.
O questionamento, portanto, é pertinente e a tema polêmico, com grande diversidade de opinião entre médicos e diferentes sociedades médicas sobre o assunto. Além disso, está havendo um aumento do número de pessoas que se encaixe nessa situação. No Brasil, por exemplo, em censo online da Revista Superinteressante, foram mapeados mais de 150 mil tatuagens no ano de 2013 – veja aqui – e, muito provavelmente, esses dados estão subestimados.
Sendo assim, existe base fisiopatológica para recomendação de uso de antibioticoprofilaxia antes de determinados procedimentos. Contudo, esse assunto é motivo de divergência entre diferentes pesquisadores/estudiosos e, de maneira geral, há correntes distintas de pensamento entre algumas importantes sociedades internacionais (americana e europeia) e os especialistas brasileiros. 
Desde o início dos anos 2000, a sequência de guidelines ‘gringos’ estabelece cada vez mais restrição as indicações de profilaxia – NICE, órgão britânico, em 2008, chegou até mesmo recomendar que não fossem aplicada a antibiotoprofilaxia em procedimentos odontológicos até para pacientes de alto risco de endocardite –  ao passo que as nossas recomendações – atualizadas em sua última vez nas II Diretrizes de Perioperatório de 2011 – ainda permanecem mais amplas e acabam sendo justificadas pelo fato de, no geral, a população brasiléira ter pior acesso aos sistemas médico e odontológico.
Além disso, embora ainda em pequeno número, existem relatos de quadros de endocardite após a realização de tatuagem e peircengs, sobretudo quando manipulação da língua. 
A importância do tema fez com que a ESC, em seus últimos guidelines de 2015, colocasse um tópico específico a respeito dessa situação, o qual apresentamos abaixo:
– TODOS os doentes com valvopatia, portadores ou não de prótese, devem ser esclarecidos a respeito dos riscos de endocardite e DESENCORAJADOS a realizar qualquer tipo de arte corporal que envolvam quebra de barreira cutâneo-mucosa, p.e. tatuagens ou piercings.
– Se mesmo assim o doente insistir em realizar o procedimento, o mesmo deve ser realizado em condições estéreis.
– NÃO HÁ indicação de realização de antibioticoprofilaxia para essas situações, bem como outros procedimentos cutâneos, desde que não haja infecção ativa no local, mesmo para doentes considerados de alto risco.
Quadro retirado das recomendações de profilaxia de endocardite disponíveis no ESC 2015. Veja que o nível de evidência em relação a antibioticoprofilaxia é C, sobretudo devido a escassa literatura a respeito do tema.
NA PRÁTICA
As evidência sobre o tema são fracas e os estudos com alta chance de viés. Sendo assim, como de se esperar as recomendações são de nível de evidência C. Portanto, a recomendação tem mais um poder de sugerir uma conduta do que ‘bater o martelo’ e fechar a questão. Entretanto, apesar de não ser a melhor evidência possível, é a melhor disponível e é o que temos para nos pautar da parte científica.
Porém,o tema é delicado, uma vez envolve não só a saúde física, mas também a sensação de bem estar social e plenitude mental do doente que aprecia a arte corporal. Sendo assim, há de se usar o bom senso.
Deve-se desestimular a prática de artes corporais que envolvam quebras de barreira desde a primeira consulta. Se o paciente, mesmo após esclarecido, insistir no procedimento, dê a orientação que procure um local onde as condições de higiene sejam impecáveis, sem reutilização de material e DECIDA em relação a utilização ou não da antibioticoprofilaxia baseado em uma balança utilizando as variáveis:
– o local aonde vai ser localizado ( pele x mucosa)
– a extensão da tatuagem
– sangramento associado
– risco de valvopatia para endocardite infecciosa
– existência de alergias prévias a algum dos antibióticos possíveis de serem utilizados
Leitura sugerida

1) 2015 ESC Guidelines for the management
of infective endocarditis. European Heart Journal (2015) 36, 3075–3123
doi:10.1093/eurheartj/ehv319. Disponível aqui
2)  Infective Endocarditis After Body Art: A Review of the Literature
and Concerns. M.L. Armstrong et al. / Journal of Adolescent Health 43 (2008) 217–225
3) Bacterial endocarditis following repeated tattooing. Satchithananda, Walsh, Schofield.Heart 2001;85:11–12
4) II Diretrizes Brasileiras de Perioperatório. 2011. Disponível aqui
5) Censo sobre tatuagens. Revista Super Interessante. Disponível aqui

Sobre o Autor

Daniel Valente

Médico com residência médica em Clínica Médica pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e em Cardiologia Clínica pelo Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (InCor-HC-FMUSP). Especialista em Ecocardiografia pelo InCor-HC-FMUSP e pelo Departamento de Imagem Cardiovascular da Sociedade Brasileira de Cardiologia (DIC-SBC). Doutor em Cardiologia pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). Coordenador do Serviço de Ecocardiografia da ONE Laudos.

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