Conforme a pandemia de COVID-19 avança, aprendemos cada vez mais sobre como a doença se comporta. Desde os primeiros estudos publicados sobre o assunto, alguns fatores vêm sendo associados a pior prognóstico. Além de fatores clínicos, como idade avançada e presença de comorbidades, alterações laboratoriais também se relacionaram à maior mortalidade. Entre elas, destaca-se o aumento do d-dímero e de troponina. O aumento dos níveis de d-dímero, assim como outras alterações relacionadas aos produtos de degradação de fibrina e da cascata de coagulação, parece estar relacionado ao processo inflamatório da doença.
Foi publicado no JAMA recentemente um estudo de coorte com mais de 400 pacientes hospitalizados por COVID-19 na China, que demonstrou aumento dos níveis de troponina de alta sensibilidade em 19.7%. O estudo evidenciou ainda que mais de 50% dos óbitos apresentaram em algum momento elevação dos níveis do biomarcador, e menos de 5% dos pacientes que vieram a óbito apresentaram níveis normais durante toda a internação. A alteração de troponina esteve relacionada a uma maior probabilidade de morte, tanto no início dos sintomas (hazard ratio 4.26) quanto durante o período de persistência no hospital (hazard ratio 3.41).
Apesar disso, o mecanismo exato responsável pela injúria miocárdica que ocorre nesses pacientes permanece controverso. Evidências provenientes de um relato de caso de paciente com diagnóstico de MERS-COV (responsável pela pandemia do coronavírus no Oriente Médio) demonstraram edema miocárdico e alterações de motilidade segmentar do VE, o que aponta para a possibilidade de miocardite aguda, com infecção direta do vírus no tecido miocárdico.
Por outro lado, estudos recentes sugerem que a enzima conversora de angiotensina 2 (ACE2) é altamente expressada no coração. Em post anterior publicado no site, já foi descrita a afinidade dessa enzima ao SARS-COV-2, portanto é plausível a hipótese de que exista um grau de injúria miocárdica pelo vírus, mediada pela ACE2.
Outra hipótese é de que a injúria miocárdica seja causada diretamente pelas citocinas inflamatórias liberadas durante a infecção, em especial as interleucinas 2, 7 e 10, fator estimulante de granulócitos e fator de necrose tumoral (TNF) alfa. Esses marcadores estão presentes em grande quantidade nos pacientes com COVID-19, conforme descrito por Huang e colaboradores. As citocinas podem agir diretamente nas artérias, causando disfunção endotelial, instabilidade e ruptura de placas, ou nas células miocárdicas, levando à apoptose e necrose dos miócitos.
Entre os pacientes do estudo que apresentaram alterações dos níveis de troponina, apenas 22 (26.8%) realizaram eletrocardiograma após a admissão hospitalar e 14 dos 22 foram submetidos ao exame durante os períodos de elevação do biomarcador. Todos os 14 ECG apresentaram alterações compatíveis com isquemia miocárdica, como alterações do segmento ST, inversão de T e surgimento de ondas Q patológicas.
Os dados apresentados são iniciais, derivados de estudos observacionais não tão grandes, com seguimento curto. Nos próximos meses serão publicados novos registros com análise de ressonância magnética e patologia, que devem nos ajudar a elucidar a questão.
Leitura sugerida:
Shi S, Qin M, Shen B, et al. Association of Cardiac Injury With Mortality in Hospitalized Patients With COVID-19 in Wuhan, China. JAMA Cardiol. Publicado online em 25 de Março de 2020.
Alhogbani T. Acute myocarditis associated with novel Middle east respiratory syndrome coronavirus. Ann Saudi Med. 2016;36(1):78-80.
Huang C, Wang Y, Li X, et al. Clinical features of patients infected with 2019 novel coronavirus in Wuhan, China. Lancet. 2020;395(10223):497-506.