Cardiologia Geral

COVID-19: um dos tratamentos pode causar danos

Estamos travando uma verdadeira guerra contra uma doença nova e desafiadora. Até o momento atual, não há tratamento específico comprovadamente eficaz ou vacina contra a COVID-19. Uma das terapêuticas sendo testadas é a associação de azitromicina e cloroquina/hidroxicloroquina, dois medicamentos já conhecidos para outros fins. É importante salientar que ambos podem prolongar a duração do potencial de ação das células miocárdicas e, consequentemente, aumentar o risco de taquicardia ventricular polimórfica (Torsades de Pointes). Avaliar o risco de cada paciente e monitorar os efeitos na repolarização ventricular são fundamentais para prevenção de eventos arrítmicos (figura 1).

Figura 1: TV polimórfica relacionada a QT longo

 

A duração do potencial de ação é medida através do intervalo QT no eletrocardiograma (figura 2). Um intervalo QT longo se traduz em maior vulnerabilidade da repolarização ventricular. A mensuração do intervalo QT deve ser corrigida para a frequência cardíaca (FC) através da fórmula de Bazett ([QTc = QT / √ RR] obs: QT em ms e RR em s). Os valores de QTc variam conforme idade e sexo, sendo considerados normais, em adultos, quando ≤ 440ms em homens e ≤ 460ms em mulheres.

Uma vez indicado o uso de cloroquina e/ou azitromicina, idealmente deve-se realizar um ECG antes do início, para medida do QTc basal e estratificação de risco. Durante o uso desses medicamentos, é recomendado repetir o ECG com frequência para avaliar eventual prolongamento do intervalo QT. Se QTc > 500ms, o uso deve ser evitado, uma vez que o risco pode superar o benefício nesse cenário. Um valor de QTc < 450ms é seguro para iniciar tais medicações, não excluindo a necessidade de manter o monitoramento com ECG seriado. Já para valores entre 450-500ms, é necessário cautela, avaliando risco/benefício e – se indicado o uso dos medicamentos – preferencialmente em ambiente hospitalar e sob monitorização cardíaca contínua.

Se o paciente apresenta TV polimórfica durante o tratamento, é preferível o uso de lidocaína e sulfato de magnésio. Amiodarona deve ser evitada, pois prolonga o intervalo QT, podendo perpetuar a arritmia. Em caso de bradicardia associada, isoproterenol e estimulação ventricular com marcapasso são opções possíveis.

 

FIgura 2: Eletrocardiograma com seus intervalos e segmentos

 

Outras medidas importantes a se considerar no tratamento:

– evitar/suspender outras drogas com potencial de prolongar o QT (crediblemeds.org);

– corrigir distúrbios eletrolíticos (principalmente hipocalemia, hipomagnesemia e hipocalcemia);

– atentar para população de maior risco (idosos, isquemia miocárdica, miocardite, sepse, insuficiência cardíaca, síndrome do QT longo congênito);

– acionar equipe de cardiologia e/ou arritmia para discussão.

A segurança de qualquer terapêutica instituída é primordial e deve sempre ser buscada. Isso é baseado em um dos princípios da medicina (primum non nocere). De posse desse lema, em busca sempre de práticas seguras, teremos maior chance de êxito no tratamento dos nossos pacientes.

 

** Texto escrito pelo colaborador Vitor Dornela de Oliveira, arritmologista pelo Instituto do Coração – InCor – HCFMUSP.

Leitura sugerida:

Postema PG, Wilde AAM. The Measurement of the QT Interval. Curr Cardiol Reviews. 2014;10:287-294.

Nachimuthu S, Assar MD, Schussler JM. Drug-induced QT interval prolongation: machanisms and clinical management. Ther Adv Drug Saf. 2012;3(5):241-253.

Giudicessi JR, Noseworthy PA, Friedman PA, Ackerman MJ. Urgent guidance for navigating and circumventing the QTc prolonging and torsadogenic potential of possible pharmacotherapies for COVID-19. Mayo Clinic Proceedings. March 25, 2020.

Vandael E, Vandenberk B, vandenberghe J, Willems R, Foulon V. Risk Factors for QTc-prolongation:s systematic review of the evidence. Int J Clin Pharm. 2017;39:16-25

Stas P, Faes D, Noyens P. Conduction disorder and QT prolongation secondary to longterm treatment with chloroquine. Int J Cardiol. 2008;127:e80-82.

Sobre o Autor

Bernardo Rosário

Médico com residência médica em Clínica Médica pela Universidade Federal do Paraná e em Cardiologia Clínica pelo Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (InCor-HC-FMUSP).

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