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Desfibrilação – choque na presença de oxigênio e com segurança

Durante a realização de cursos de emergência e em simulações de parada cardiorrespiratória (PCR), sempre ouvimos que, antes de realizar a desfibrilação, devemos afastar as fontes de oxigênio (cateter de O2, máscaras, dispositivo bolsa-válvula-máscara) pelo risco de causarmos explosões e incêndios. Será mesmo? No atual momento de pandemia por COVID-19, com diversos pacientes em ventilação mecânica, caso seja necessário realizar uma desfibrilação em seu paciente, o que você faz? Chocar após desligar ventilador? Chocar durante pausa expiratória? Desconectar o sistema do tubo orotraqueal?

Após ler esse post esperamos que você se sinta seguro quando esse momento chegar.

História: A desfibrilação foi descoberta em 1899 pelos fisiologistas suíços, Jean-Luis Prevost e Frederik Batelli, durante suas pesquisas sobre fibrilação ventricular (FV) em animais (descobriram que podiam induzir essa arritmia aplicando choques diretamente no coração e que aplicando novos choques com carga ainda maior poderiam revertê-la).

Em 1930, Dr. Albert S. Hyman (Nova Iorque) criou uma espécie de marcapasso, em que se inseria uma agulha até o átrio direito de pacientes em PCR e a conectava em um gerador elétrico de pulsos intermitentes como tentativa de reanimação. Teve sucesso em diversos testes em animais e realizou um teste em humano, mas sua invenção não teve grande aceitação da comunidade científica na época.

Dr. Albert S. Hyman

Dr. Claude S. Beck (Cleveland), em 1947 durante uma cirurgia cardíaca em paciente de 14 anos que apresentou FV, realizou a 1ª desfibrilação em humanos. O paciente apresentou retorno da circulação espontânea com sucesso. Sua ideia foi adaptada de técnica de fisiologista americano Carl J. Wiggers que estava mantendo circulação de animais com massagem cardíaca e desfibrilação na mesma época.

Desfibrilador utilizado por Dr. Claude Beck

Dr. Zoll (Harvard), em 1955, utilizou pela primeira vez o desfibrilador externo em PCR .

Dr. Zoll

Frank Pantridge (Norte-irlandês) inventou desfibrilador portátil em 1965.

Desfibrilador portátil

Desfibrilador externo automático (DEA) foi criado em 1978 pelos médicos Arch Diack e W. Stanley Welborn, juntamente com engenheiro Robert Rullman (EUA).

Primeira versão de DEA

Relato de caso : Durante PCR prolongada em ambiente de UTI, após desfibrilação ocorreu surgimento de faísca que ocasionou início de incêndio com fogo nos lençóis da cama do paciente e propagação até o ventilador. Esse episódio ocasionou destruição do ventilador e de maca do paciente, além da evacuação dos outros 11 pacientes da UTI.

Apesar de raros, eventos como esse podem colocar diversas pessoas em risco.

O mecanismo que ocasiona o incêndio depende de 3 variáveis:

Calor ocasionado por faísca: a faísca pode ser gerada caso exista um mínimo espaço com ar entre as pás do desfibrilador e pele do paciente (mais comum ocorrer em pacientes desnutridos, pás sobre proeminências ósseas, aplicar pressão insuficiente, gel condutor aplicado de forma incorreta ou para outras finalidades como USG, posicionamento de pás sobre eletrodos ou fios)

Combustível: pêlos no tórax ou materiais inflamáveis próximos (lençóis, fios).

Oxigênio: normalmente ambientes com concentração de O2 > 50% e que está a <30cm da faísca, pode ocorrer fenômeno de “propagação superficial de chama” exemplificado no vídeo do ínicio do post.

O que os principais guidelines nos dizem?

ACLS 2015, Diretriz Brasileira de Ressucitação Cardiopulmonar da Sociedade Brasileira de Cardiologia – 2019, Recomendações da AMIB para RCP de paciente com diagnóstico ou suspeita de COVID-19 e editorial publicado no Circulation sobre RCP em pacientes com COVID-19 não citam manejo de desfibrilação em contexto de ventilação mecânica.

Único guideline a citar esse tema:

Em resumo, não se tem relato de incêndio quando :

Paciente em Sistema fechado (ventilador mecânico conectado ao tubo endotraqueal).

Utilizando pás adesivas.

Sugestão de como minimizar o risco de incêndio relacionado a desfibrilação e cardioversão:

Oxigênio:  Remover dispositivos que ofertam O2 suplementar (cateter, máscara, AMBU) da área em que será realizada a desfibrilação (diretriz europeia sugere 1 metro de distância), manter ventilador em sistema fechado com tubo orotraqueal.

Pás: Aplicar pressão adequada nas pás, utilizar gel adequado, retirar eletrodos, fios e pêlos (se procedimento eletivo) de área que será aplicada pá; preferir pás adesivas.

Ok, agora me convenci que posso cardioverter ou desfibrilar paciente intubado, mas de onde surgiu essa regra de 1 metro de distância para dispositivos de O2? Por que não deveria utilizar gel de USG nas pás? Qual pressão aplicar nas pás, em que momento do ciclo respiratório realizar a cardioversão e por que isso é tão importante?

Essas perguntas serão respondidas em um próximo post. Até lá.

Fontes:

1- J. Prevost and F. Battelli, “La mort par les descharges electriques,” J. Physiol., vol. 1, pp. 1085–1100, 1899.

2- Cantello E, Davy TE, Koenig KL. The question of removing a ventilation bag before defibrillation. J Accid Emerg Med. 1998; 15:286.

3- Hummel, R. S. (1988). Spark-Generating Properties of Electrode Gels Used During Defibrillation. JAMA, 260(20), 3021.

4- Ward ME. Risk of fires when using defibrillators in an oxygen enriched atmosphere. Resuscitation. 1996;31(2):173.

5- 2015 American Heart Association Guidelines Update for Cardiopulmonary Resuscitation and Emergency Cardiovascular Care Circulation. 2015;132:S315–S367

6- Dana P. Edelson, e col Interim Guidance for Basic and Advanced Life Support in Adults, Children, and Neonates With Suspected or Confirmed COVID-19 Circulation. 2020;141:e933–e943

7- Bernoche C, Timerman S, Polastri TF, Giannetti NS, Siqueira AWS, Piscopo A et al. Atualização da Diretriz de Ressuscitação Cardiopulmonar e Cuidados de Emergência da Sociedade Brasileira de Cardiologia – 2019. Arq Bras Cardiol. 2019; 113(3):449-663

8- Guimarães HP, Lane JC, Flato UAP e col.  The short history of cardiopulmonary resuscitation  Rev Bras Clin Med, 2009;7:177-187

9- Guimarães HP, e col Recomendações para Ressuscitação Cardiopulmonar (RCP) de pacientes com diagnóstico ou suspeita de COVID-19 Site: amib.org.br

10- K.G. Monsieurs et al  European Resuscitation Council Guidelines for Resuscitation 2015 Resuscitation 95 (2015) 1–80

Sobre o Autor

Afonso Dalmazio Souza Mario

Graduado em Medicina na Santa Casa de Misericórdia de Vitória - EMESCAM. Residência Médica em Clínica Médica pelo Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP) e Cardiologia Clínica pelo Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (InCor-HCFMUSP).

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