Seguindo a linha de conteúdo a respeito das últimas terapias para o COVID-19 e as precauções que devem ser tomadas com seu uso, o @temasemcardiologia tem mostrado algum conteúdo com orientações a respeito de como aferir o intervalo QT corrigido, o QTc, principalmente devido ao advento da combinação Hidroxicloroquina + Azitromicina como possibilidade terapêutica nesta doença e seus riscos inerentes ao prolongamento do intervalo QT.
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Novos estudos têm sido publicados a cada dia com novidades e resultados cada vez mais controversos sobre esta combinação de medicações. Um estudo brasileiro recente, conduzido em Manaus e publicado no JAMA em 24/04/2020, encontrou uma maior frequência valores de QTc maior que 500 ms com doses altas de Difosfato de Cloroquina em comparação com o grupo que utilizou doses mais baixas da medicação, numa amostra de 81 paciente com uma apresentação grave da COVID-19.
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O intervalo QT engloba o intervalo QRS e o segmento ST e portanto, representa um somatório da atividade de despolarização e repolarização ventricular.
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Na prática clínica, no entanto, nos deparamos com situações fora dos ensaios clínicos que validaram o cálculo do QTc, como nos pacientes com fibrilação atrial, os portadores de marca-passo ou os pacientes com bloqueios de ramo direito ou esquerdo.
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Traremos algumas boas dicas, como sempre baseadas na melhor evidência disponível, sobre como proceder nestes casos. Vamos lá.
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Como calcular o QTc nos pacientes portadores de Fibrilação Atrial (FA)?
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A velocidade de repolarização ventricular depende da frequência cardíaca. Não à toa, na hora que vamos calcular o intervalo QTc, utilizamos a medida do intervalo RR imediatamente anterior ao intervalo QT que estamos medindo. Sabe-se ainda que tanto a FC média nas últimas horas quanto a FC imediata de aferição são importantes.
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E no paciente que está em ritmo de FA, que apresenta um ritmo totalmente irregular?
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O ideal seria cardioverter o paciente e calcular o QTc em ritmo sinusal. Sabemos, no entanto, que essa conduta é na maioria das vezes pouco prática e algumas vezes impossível.
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Neste caso, as fórmulas de correção do intervalo QT, inclusive a fórmula da Bazett que é a mais validada, não incluiu pacientes com FA (por motivos óbvios). Logo, saiba que não existe um método ideal para cálculo do QTc neste cenário, no entanto, conseguimos a partir de alguns estudos pequenos algumas extrapolações. Resumindo em três boas dicas:
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- Comece pela derivação DII, calcule o intervalo QT no QRS que sucede o intervalo RR mais longo do traçado.
- Faça mais de uma medida, em QRS diferentes (pelo menos 5) e utilize a média dos intervalos QT calculados na fórmula
- Jogue na fórmula a média dos RR e não o RR anterior
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Depois de tudo isso, você pode usar uma das fórmulas validadas. Saiba que a fórmula de Bazett costuma superestimar o intervalo QTc na FA; as fórmulas de Fredericia e de Hodges se correlacionaram melhora com o QTc em ritmo sinusal, apesar de não serem perfeitas.
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Referências:
- Tooley J, Ouyang D, Hadley D, Turakhia M, Wang P, Ashley E, Froelicher V, Perez M. Comparison of QT Interval Measurement Methods and Correction Formulas in Atrial Fibrillation. The American Journal of Cardiology 2019). doi:10.1016/j.amjcard.2019.02.057
- Dash A., Torado C, Paw N, Fan D, Pezeshkian N, Fan D & Srivatsa U. QT correction in atrial fibrillation – Measurement revisited. Journal of Electrocardiology 2019. doi:10.1016/j.jelectrocard.2019.06.009
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Como calcular o QTc nos pacientes com Bloqueio de Ramo?
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Os bloqueios de ramo direito (BRD) e esquerdo (BRE) geram um aumento do intervalo QT devido ao alargamento do QRS e a alteração secundária de repolarização subsequente. Habitualmente o aumento do QT costuma ser menor no BRD em comparação com o BRE. É valido lembrar ainda que a condição cardíaca que gera o bloqueio de ramo pode também ser responsável pelo aumento do intervalo QT (miocardiopatia isquêmica, por exemplo).
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Publicações antigas, da década de 1970, sugeriam a correção do QT nesses casos basicamente subtraindo o prolongamento do QRS do QT encontrado (por exemplo, se o QRS do paciente com bloqueio é de 140 ms, você reduziria 20ms da conta do intervalo QT, corrigindo para um valor de “QRS normal” de 120 ms). Essa estratégia, no entanto, é menos acurada já que o aumento do intervalo QT nesta população não se dá apenas pelo alargamento do QRS – apesar de ser uma aproximação razoável em cenários clínicos específicos.
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Trabalhos mais recentes trouxeram “novas fórmulas” de ajuste para os casos de bloqueios de ramo, baseados principalmente nos cálculos no estudo eletrofisiológico, durante estimulação ventricular programada.
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Bloqueio de Ramo Esquerdo: No caso do BRE, uma publicação na renomada revista de arritmia Heart Rhythm em 2014, por Bogossian et al, trouxe uma fórmula prática:
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QTm = QTb – 0,485*QRSb
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Sendo, QTm = “QT modificado” que é o QT ajustado devido ao BRE (este que você deve aplica nas fórmulas de QTc que você conhece); QTb = intervalo QT medido na vigência do bloqueio; e QRSb = intervalo QRS medido na vigência do bloqueio
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Ou seja, nessa fórmula, basicamente você diminui o QT calculado de “quase metade” do valor do QRS com bloqueio de ramo esquerdo! Existem outras fórmulas, mas esta é a mais famosa.
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Além disso, pela forma em que foi criada a fórmula (estimulação ventricular programada no ventrículo direito), seria razoável extrapolá-la para os pacientes portadores de marca-passo atrioventricular.
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Referência:
Bogossian H, Frommeyer G, Ninios I, et al. New formula for evaluation of the QT interval in patients with left bundle branch block. Heart Rhythm, 11(12), 2273–2277. doi:10.1016/j.hrthm.2014.08.026
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Bloqueio de Ramo Direito: A literatura é ainda mais escassa no caso do BRD. Sabe-se que o aumento do QT no BRD é menos pronunciado que no BRE (ainda bem!).
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Encontra-se uma publicação de 1973 que sugere uma correção reduzindo 0 valor de 20 ms do valor encontrado de QTc (ou seja, você diminuiria direto do QTc) nesses casos, porém parece ser menos generalizável.
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Referência:
- Talbot. QT interval in right and left bundle-branch block. British Heart Journal, I973, 35, 288-29I.