Ficha Técnica

iECA/ARA-2 em pacientes infectados pelo COVID-19 – Evidência Atual

Nos últimos dias temos ouvido muito nas mídias sobre o risco aumentado de MORTE em pacientes que usam iECA/BRA em dados de coorte da China, causando muita confusão na população leiga e nos próprios profissionais de saúde. Mas qual a evidência científica que temos até agora?

 

Farei uma revisão breve:

 

  • Qual a função da enzima ECA-2 (angiotensin converting enzyme type – 2 / enzima conversora de angiotensina tipo 2)

 

É uma proteína de membrana plasmática e solúvel que faz parte da metabolização da Angiotensina II, gerando as Angiotensinas de 1 a 7 cuja função biológica é duvidosa (vide figura 1). O efeito final é que a ação da ECA-2 diminui a ação vasoconstritora e tem ação vasodilatadora.

 

 

 

Figura 1 Fonte: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC5365219/pdf/f1000research-6-10445.pdf

 

  • Qual a relação do COVID-19 com a ECA-2 ?

 

O Covid-19 e muitos outros coronavírus entram nas células (pneumócitos tipo 2 e enterócitos) através da ECA-2, logo se o nível sérico da ECA-2 for maior isto também causará uma maior gravidade da infecção viral  (vide figura 2) https://jvi.asm.org/content/jvi/88/2/1293.full-text.pdf

https://jvi.asm.org/content/jvi/88/2/1293.full-text.pdf

 

 

  • Os iECA/BRA aumentam a expressão de ECA-2 ?

 

Muito provavelmente sim. Estudo publicado na revista Circulation mostrou que ratos que que receberam lisinopril e losartana tiveram aumento da expressão do RNAm da ECA-2 (Figura 3)

https://www.ahajournals.org/doi/full/10.1161/CIRCULATIONAHA.104.510461?rfr_dat=cr_pub%20%200pubmed&rfr_id=ori%3Arid%3Acrossref.org&url_ver=Z39.88-2003)

 

(https://www.ahajournals.org/doi/full/10.1161/CIRCULATIONAHA.104.510461?rfr_dat=cr_pub%20%200pubmed&rfr_id=ori%3Arid%3Acrossref.org&url_ver=Z39.88-2003). Outros estudos tiveram achados semelhantes (Ocaranza et al e  Ishiyama et al)

, enquanto outros estudos não tiveram os mesmos achados (Burrell et al)

 

  • E a Relação em Humanos ?

 

Estudos em humanos não viram associação (aumento ou diminuição) entre níveis circulantes de ACE-2 e uso de iECA e BRAs (https://academic.oup.com/europace/article/19/8/1280/2194467 e

https://journals.plos.org/plosone/article?id=10.1371/journal.pone.0198144)

 

  • Afinal, iECA/BRA aumentam a ECA-2 em humanos ?

 

Não sabemos, mas o fato é que a interpretação da dosagem da ECA-2 tem várias dificuldades: i) não sabe-se se o nível sérico é representativo da nível tecidual (que seria o mais importante para replicação viral, visto que é uma enzima tecidual)  ii) não sabemos definir qual concentração seria normal / alta / baixa com base nos valores avaliadas (definição do normal x alterado)

 

  • Como a Angiotensina II interage com ECA-2 ?

 

Estudo experimental (Deshotels et al – https://www.ahajournals.org/doi/10.1161/HYPERTENSIONAHA.114.03743), estabeleceu que a ECA-2 interage com o receptor AT-1 (sítio de inibição dos BRAs). Uma exposição aguda a uma maior concentração de Angiotensina II leva a uma maior internalização da ECA-2 via lisossomos, através da diminuição da interação entre receptor AT1 e ECA-2 (Figura 4 – retirada do site http://www.nephjc.com/news/covidace2)e este mecanismo pode ser bloqueado com uso da Losartana (diminuindo consequentemente o número de vírus que entraria na célula)

http://www.nephjc.com/news/covidace2

  • O Uso de iECA/BRA poderia então ser benéfico em Pneumonia pro COVID-19 ?

 

Não sabemos. Estudo em animal (https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4229671/) com modelo experimental do vírus Influenza H7N9 em ratos sem mutação versus “knockout” da ECA-2: maior mortalidade nos ratos que não tinham a ECA-2! Sugerindo, então, possível benefício da ECA-2 em pneumonias virais. Outro estudo experimental com lesão pulmonar induzida pelo coronavírus evidenciou que a ECA-2 é fundamental para viremia pelo coronavírus e que o bloqueio do receptor AT1 reduziu lesão pulmonar induzida pelo Vírus (https://www.nature.com/articles/nm1267.epdf?shared_access_token=SmsdoAI0kRnTQM-PAjWdo9RgN0jAjWel9jnR3ZoTv0MpjeD9TvdBh7o_D7pBzNSZAeEm88CwZu2oDsGdU_f0wwNhmxQRe5zNGvoi3oqQwQDGuXGSd7AzSjYvd4CwdQUM)

 

  • E os dados da Pandemia atual por COVID-19 ?

Relato de 12 pacientes apenas (https://link.springer.com/article/10.1007%2Fs11427-020-1643-8) avaliando impacto dos níveis de Angiotensina II: maior em doentes, maior relação da Angiotensina II com carga viral, maior acometimento pulmonar (relação Pa02/Fi02)

Outro estudo, este em formato “preprint”, (https://link.springer.com/article/10.1007%2Fs11427-020-1643-8) de pacientes hospitalizados por COVID-19: alta incidência de COVID-19 (22% < 3,0 mMol/dL), não justificado por perda de TGI, secundária a perda de TGU e com relação com comorbidades prévias e severidade de infecção. Autores sugerem que pela degradação da ECA-2 pelo COVID-19 tem-se uma hiperativação do Sistema Renina-Angiotensina-Aldosterona (maior atividade da Angiotensina II) e consequentemente maior secreção de aldosterona e hipocalemia (embora no estudo não tenham dosado dos os componentes desse sistema)

 

  • Conclusões com formato FAQ

 

Existe evidência que o uso dos iECA/ARA-2 aumenta a mortalidade ou severidade de acotimento pulmonar em pacientes infectados pelo COVID-19 ? Não

 

Devemos suspender essas medicações em casos suspeitos, confirmados ou na população sob risco ? Não

 

ECA-2 está envolvida na infecção pelo COVID-19 ? Sim e sabemos que a modulação desse eixo é um alvo importante para terapias futuras

 

Existe uma possível relação entre iECA/ARA-2 e gravidade de infecção? Sim, mas não existe evidência suficiente para sabermos se o uso dessas medicações é protetora, neutra ou agravante para pacientes com infecção pulmonar pelo COVID-19

 

Se existem outros anti-hipertensivos porque simplesmente não trocamos os iECA/ARA-2 por outras medicações ? Sendo medicações que mudam prognóstico / mortalidade em paciente com Hipertensão, Doença Renal Crônica com proteinúria, Insuficiência Cardíaca e não sabemos AO CERTO a relação dessas medicações com infecção pelo COVID-19 parar essas medicações seria precipitado, poderia piorar as condições basais do paciente e necessitaria intensificação de monitoramento médico e laboratorial (no caso de troca – avaliar se pressão ficou controlada, checar efeitos colaterais de outras medicações, …) – o que não é recomendado na fase atual da pandemia (ISOLAMENTO!). Essa tem sido a recomendação de todas as sociedades de cardiologia pelo mundo

 

Agradeço ao colegas do NephJC (http://www.nephjc.com/news/covidace2) pelas informações (que adaptei para publicação em português)

Sobre o Autor

Caio de Assis Moura Tavares

Graduado em Medicina pela Universidade de São Paulo. Médico com residência médica em Clínica Médica pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e em Cardiologia Clínica pelo Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (InCor-HC-FMUSP). Atualmente é médico assistente do Departamento de Cardiogeriatria do InCor-HC-FMUSP.

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