Cardiologia Geral Pronto-Socorro Terapia Intensiva Cardiológica

Aumento de troponina na TV monomórfica

TV monomórfica sustentada estável

O cenário é o seguinte: você atende um paciente com taquicardia ventricular (TV) monomórfica estável no pronto-socorro, que é revertida após uma cardioversão elétrica. Você solicita a dosagem sérica de troponina e esta vem aumentada (e bem aumentada). A pergunta é: o que aconteceu? Três possibilidades vem à mente: 1) O paciente teve um infarto agudo do miocárdio (IAM), que elevou a troponina e também causou a TV; (2) o paciente tem uma cicatriz miocárdica, teve a TV por mecanismo de reentrada nessa cicatriz, o que gerou um desbalanço transitório de oferta e demanda e aumentou a troponina (injúria miocárdica/IAM tipo 2); ou (3) a elevação da troponina foi secundária à cardioversão elétrica.

Qual a opção que você escolheria? 

Estatisticamente falando, diante de uma TV MONOMÓRFICA, a opção mais provável e a (2). Vamos discutir esse assunto no texto abaixo.

A elevação dos níveis séricos de troponina T ou I é um achado sensível para o diagnóstico de infarto, porém a especificidade está longe de 100%, sendo ainda menor com os testes de troponina ultra-sensível. A quarta definição universal de infarto define como infarto agudo do miocárdio (IAM) a presença de injúria miocárdica (elevação de troponina) e evidência clínica de isquemia miocárdica (por exemplo, dor torácica, desnivelamento do segmento ST no eletrocardiograma). Se a isquemia é causada por uma trombose coronariana aguda estamos em frente a um IAM tipo 1; se ocorre por um desbalanço de oferta/demanda de oxigênio no miocárdio, entraria na categoria de IAM tipo 2. A elevação isolada de troponina, sem evidência de isquemia miocárdica, é um achado compatível com injúria miocárdica.

É comum o achado de elevação de troponina após taquiarritmias. O pacing atrial rápido traz elevação de troponina ultrassensível em pacientes normais. Nos casos de taquicardia ventricular, pode ser difícil diferenciar se a elevação de troponina é secundária à injúria miocárdica/IAM tipo 2, ou como consequência de um IAM tipo 1 que também causou a TV. A prevalência elevada de doença arterial coronariana (DAC) na população idosa, que também é a população que mais se apresenta com taquicardia ventricular, dificulta ainda mais essa diferenciação. 

É extremamente importante saber se a elevação de troponina é causa primária ou apenas secundária à arritmia ventricular, já que uma interpretação equivocada do quadro clínico, atribuindo a causa da TV a uma obstrução coronariana por exemplo, pode  fazer com que o paciente não receba o tratamento correto para a sua condição (por exemplo, um cardiodesfibrilador implantável ou CDI, antiarrítmicos e ablação por cateter).

Entre os achados que são usados na diferenciação: 

  1. Tipo de taquicardia ventricular. 

Habitualmente as arritmias ventriculares polimórficas (TV polimórfica e Fibrilação Ventricular) não se correlacionam com substrato anatômico de cicatriz ventricular e são mais comumente causados por distúrbios fisiológicos ao nível do cardiomiócito, incluindo a isquemia miocárdica. A TV monomórfica, por sua vez, envolve um mecanismo de reentrada que na maioria das vezes inclui um substrato anatômico de uma cicatriz, logo reduzindo a chance de um IAM ser a causa da TV. Substratos fisiológicos no entanto, especialmente no IAM com supradesnivelamento do segmento ST, podem causar áreas de anisotropia na borda da área isquemia,  especialmente durante reperfusão coronariana, podendo eventualmente causar TV monomórfica.

      2.  Níveis de troponina. 

O aumento de troponina é um achado relativamente comum após taquiarritmias, principalmente após o advento das troponinas ultrassensíveis. Até 48% das taquicardias supraventriculares apresentaram elevação de troponina em um estudo retrospectivo. Neste mesmo estudo, não houve diferença na incidência de fatores de risco cardiovascular ou de DAC após cateterismo entre o grupo que teve e o que não teve elevação de troponina. 

No caso das taquicardias ventriculares, devido à maior idade, comorbidades e à maior incidência de DAC, encontrar uma relação de causa e efeito é ainda mais delicada. Na grande maioria das vezes, exceto nos casos de TV polimórfica ou FV em que a isquemia aguda apresenta maior probabilidade de culpa, a TV monomórfica que causou uma elevação moderada de troponina secundária a um IAM tipo 2/injúria miocárdica, e não o contrário. Essa diferenciação, no entanto, nem sempre é fácil e deve levar em conta a história clínica, especialmente os sintomas e o ECG pré taquiarritmia. 

Além da elevação por si só, os valores de pico de troponina são frequentemente utilizados como ferramenta para diferenciação. O valor de pico das troponinas cardíacas costuma ser maior nos IAM tipo 1 que nos IAM tipo 2 ou injúria miocárdica, no entanto, como o pico de troponina costuma ocorrer em 24-72h após o evento isquêmico, do ponto de vista prático esta característica não costuma ajudar na diferenciação. Além disso, vários relatos de caso reportam elevação de troponina de até 200 vezes o limite superior da normalidade após taquiarritmias, tanto supraventriculares como ventriculares, com cateterismo evidenciando artérias epicárdicas normais.

Vale ressaltar que a cardioversão elétrica externa de uma arritmia ventricular não mostrou elevar de maneira significativa os níveis de troponina. A interpretação dos níveis séricos de troponina como método para firmar diagnóstico etiológico e guiar conduta terapêutica deve ser realizada de maneira cautelosa.

     3.  Curva de troponina.

Um aumento e uma queda nos níveis de troponina basicamente identificam a presença de um insulto agudo do miocárdio, seja ele de etiologia isquêmica ou não. O encontro de valores de troponina elevados de maneira crônica tipo plateau, no entanto, fala contra a hipótese de IAM e favorece outros diagnósticos. 

     4.  Presença de sintomas de isquemia associados.

A presença de dor torácica é comum em pacientes com taquicardia ventricular, reportado em até 64% dos casos. A alta demanda de oxigênio miocárdica durante uma TV pode gerar um desbalanço de oferta e demanda, culminando em isquemia miocárdica e dor torácica, o que vai muito além de só o aumento de frequência cardíaca. Estudos experimentais apontam para uma maior demanda miocárdica de oxigênio durante eventos de TV em comparação com eventos de taquicardia supraventricular em frequência cardíaca semelhante. Em pacientes com doença arterial coronariana, esse desbalanço de oferta e demanda pode ser ainda maior.

A presença de sintomas agudos de isquemia antes do início da TV aumenta a suspeita clínica de um diagnóstico de infarto tipo 1, sendo habitualmente indicada uma avaliação anatômica coronariana por cateterismo cardíaco. A presença de dor torácica apenas durante a taquiarritmia, no entanto, tem menor especificidade para infarto tipo 1. Não existem, no entanto,  estudos randomizados que avaliem qual a melhor estratégia de estratificação coronariana nesses casos. 

      5.  Presença de alterações no segmento ST e onda T após reversão da taquicardia.

Alterações na repolarização ventricular, especialmente inversões da onda T, podem ocorrem após a reversão de uma TV por mecanismos de memória elétrica, geralmente secundário a alterações de repolarização das áreas precocemente ativadas. Alguns algoritmos de estudos retrospectivos sugerem fluxogramas para diferenciar memória cardíaca de outras causas de inversão de onda T, no entanto ainda com pouca validação externa – na prática, na maioria dos cenários a diferenciação com isquemia miocárdica não é confirmatória, logo uma avaliação anatômica coronariana pode ser necessária. Um padrão de supradesnivelamento do segmento ST na derivação aVR com infradesnivelamento nas outras derivações é um achado que pode ocorrer após reversão das taquiarritmias e sugere isquemia subendocárdica difusa e não costuma se correlacionar com artérias coronárias ocluídas no cateterismo. Alterações do segmento ST tipo supradesnivelamento do segmento ST respeitando parede miocárdica, no entanto, favorecem um diagnóstico de IAM e requerem uma estratificação invasiva para confirmação diagnóstica e tratamento.

Referências

Thygesen K, Alpert JS, Jaffe AS, Chaitman BR, Bax JJ, Morrow DA, White HD; Executive Group on behalf of the Joint European Society of Cardiology (ESC)/American College of Cardiology (ACC)/American Heart Association (AHA)/World Heart Federation (WHF) Task Force for the Universal Definition of Myocardial Infarction. Fourth Universal Definition of Myocardial Infarction (2018). Circulation. 2018 Nov 13;138(20):e618-e651.

Goktekin O, Melek M, Gorenek B, Birdane A, Kudaiberdieva G, Cavusoglu Y, Timuralp B. Cardiac troponin T and cardiac enzymes after external transthoracic cardioversion of ventricular arrhythmias in patients with coronary artery disease.

Xue F, Jiang TB, Jiang B, Cheng XJ, He YM, Li X, Yang XJ. Cardiac troponin I elevation with supraventricular tachycardia: two case reports and review of the literature. BMC Res Notes. 2014 Mar 11;7:136.

Ben Yedder N, Roux JF, Paredes FA. Troponin elevation in supraventricular tachycardia: primary dependence on heart rate. Can J Cardiol. 2011 Jan-Feb;27(1):105-9.

Yetkin E, Ozturk S, Cuglan B, Turhan H. Clinical presentation of paroxysmal supraventricular tachycardia: evaluation of usual and unusual symptoms. Cardiovasc Endocrinol Metab. 2020 May 15;9(4):153-158.

Shvilkin A, Huang HD, Josephson ME. Cardiac memory: diagnostic tool in the making. Circ Arrhythm Electrophysiol. 2015 Apr;8(2):475-82.

Sobre o Autor

Rodrigo M. Kulchetscki

Graduado em Medicina pela Universidade Federal do Paraná. Residência Médica em Clínica Médica pelo Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP) e em Cardiologia Clínica pelo Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (InCor-HCFMUSP).
Atualmente é Fellow em Arritmia, Eletrofisiologia e Estimulação Cardíaca Artifical na mesma instituição.

Deixe um comentário