Cardiologia Geral

Beta-bloqueador ou iECA/BRA: qual a primeira medicação a começar no tratamento da IC ?

No manejo ambulatorial de pacientes com o diagnóstico de IC com fração de ejeção reduzida ( FEVE < 40%) muitas vezes ficamos em dúvida sobre qual medicação com benefício comprovado em desfechos-duros devemos iniciar primeiro: beta-bloqueadores ou inibidores da enzima conversora de angiotensina ?

Tradicionalmente os beta-bloqueadores foram ‘adicionados’ aos inibidores de eca por um questão muito simples: os estudos que comprovaram o benefício de mortalidade com inibidores de eca aconteceram historicamente primeiro, sendo assim, nos estudos com beta-bloqueadores os pacientes já estavam em uso de ieca.

No entanto, no início dos anos 2000, muitos pesquisadores tiveram a dúvida sobre qual medicação deveria ser iniciada primeiro em um paciente com diagnóstico recente de IC com FEVE<40%, sintomático ou não, os beta-bloqueadores ou inibidores de ECA, cada medicação com seu benefício teórico:

Outra questão importante é que a primeira droga introduzida tem a maior probabilidade de se chegar na dose alvo ( 64% para a primeira droga versus 55% para a segunda)

Três estudos randomizados controlados foram elaborados para elucidar esta questão em pacientes com FEVE reduzida: CARMEN, CIBIS-3 e um estudo de Sul-Africano ( Silwa et al)
1) CARMEN: randomizou pacientes para 3 braços ( iECA primeiro x Beta-bloq primeiro x Combinação com titulação da dose do Beta-bloq primeiro).  Os desfechos de segurança e mortalidade foram iguais entre os grupos e o grupo que iniciou tratemento combinado ( Carvedilol e Enalapril) apresentou benefício em desfecho substituto ( melhora do volume sistólico final do VE). N=572

2) CIBIS-3: estudo de não inferioridade para introdução do beta-bloqueador inicialmente que randomizou pacientes para bisoprolol x enalapril inicialmente ( 6 meses) com introdução e titulação da primeira droga nos primeiros 6 meses e introdução/titulação da secunda droga após estes 6 meses até 2 anos.  O resultado do estudo foi inconclusivo ( não-inferior, não-superior ou inferior) pois o intervalo de confiança cruzou os limites pré-determinados para superioridade e inferioridade (na análise por protocolo). A conclusão deste estudo é que a terapêutica inicial com beta-bloqueador parece ser segura

Resultados do CIBIS-3. Note que a última linha ( análise por protocolo) cruza os limites pré definidos de superioridade e inferioridade ( HR < 1,0 e HR> 1,17 respectivamente).

3) Sliwa et al: randomizou 76 pacientes para carvedilol x perindopril primeiro com introdução do segunda droga após 6 meses. O grupo carvedilol primeiro apresentou melhora de classe funcional, FEVE e queda de BNP comparada ao grupo perindopril primeiro.

Diante destas evidências o uso inicial de beta-bloqueador ou ieca fica a gosto do freguês, sendo as duas opções plausíveis e respaldadas por literatura.

No entanto, como medicina é tão arte como ciência ( copio aqui trecho de editorial recente do Dr. Gilles Montalescot que acredito ser fundamental para a prática médica: “a ciência depende de data de estudos randomizados controlados e de estudos observacionais evidenciando incidência, fatores de risco, efeito em desfechos e tratamento ótimo para uma condição médica. A Arte depende na habilidade do profissional de sintetizar o conhecimento o médico e traduzi-lo numa estrátegia de manejo ótima para um paciente específico”)  a opnião dos autores deste blog é de que o inibidor de eca deva ser iniciado primeiro e a introdução do beta-bloqueador em segundo momento.

1) Iniciar Enalapril 5 mg 12/12h associada com diurétido de alça se sinais de congestão
2) Titular dose do Enalapril em 1-2 semanas para 10mg 12/12h ( se pressão, função renal, potássio permitirem)
3) Introduzir Carvedilol 3,125 mg 2xd com titulação ( dobrar a dose) a cada 2 semanas conforme tolerância clínica
4) Após atingir a dose-alvo de Carvedilol, terminar a titulação dose de enalapril para a dose-alvo ( 20mg 12/12h)

Importante também ressaltar os seguintes cuidados/recomendações com a introdução do Beta-Bloqueador:

1) Não introduzir em pacientes internados com insuficiência cardíaca descompensada. Pode-se introduzir a medicação na mesma internação ( sem uso recente de inotrópicos positivos)
2) Peso diário após introdução do beta-bloqueador, muitas vezes o paciente necessitará de aumento da dose de diuréticos transitoriamente
3) ECG para o retorno após aumento da dose atentando para Bloqueio Atrio-Ventricular total ou BAV avançado ( Mobitz 2)
4) O benefício do beta-bloqueador não é efeito de classe: deve-se utilizar apenas Bisoprolol, Carvedilol ou Metoprolol
5) Deve-se tentar atingir a dose alvo das medicações ( aquelas que foram utilizadas em estudos) pois o benefício parece ser dose-dependente. No entanto,  se um paciente não tolerar a dose-alvo do beta-bloqueador o benefício parece ser mantido, desde que o grau de beta-bloqueio seja mantido ( isto é: frequência cardíaca) ( dados da subanálise do MERIT-HF)

Doses-alvo para medicações para IC. Guideline ESC para manejo de IC aguda e crônica 2012.

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Sobre o Autor

Caio de Assis Moura Tavares

Graduado em Medicina pela Universidade de São Paulo. Médico com residência médica em Clínica Médica pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e em Cardiologia Clínica pelo Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (InCor-HC-FMUSP). Atualmente é médico assistente do Departamento de Cardiogeriatria do InCor-HC-FMUSP.

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