Cardiologia Geral CardioOncologia

Fibrilação atrial e câncer

A Cardio-oncologia é um um campo relativamente novo da Cardiologia, mas como crescimento importante ao longo dos últimos anos. A importância da morbidade cardiológica, que pode surgir ou ser agravada pelo tratamento oncológico, vem ganhando cada vez mais espaço e atenção da comunidade médica, dado a um percentual cada vez mais de terapias oncológicas que, ao longo dos anos, vem aumentando a expectativa de vida de pacientes com câncer.

Assim como na população geral, a fibrilação atrial (FA) é uma patologia frequência em pacientes com câncer. Contudo, sua prevalência parece ser maior na população oncológica, quando em comparação com pacientes não-oncológicos.

Em registro dinamarquês com mais de 4 milhões de pacientes, podemos observar claramente uma taxa de incidência de FA que aumenta durante a idade, sendo mais que o dobro da incidência para câncers hematológicos/urológicos, chegando a mais de 5x nos portadores de neoplasia pulmonar (figura 1).

Figura 1. Comparação das taxas de incidência da FA por 1000 pessoas/ano em coorte dinamarquesa (não ajustada) de população masculina em relação a grupos etários e tipos de neoplasia.

 

Contudo, embora tenha uma incidência e prevalência elevada na população oncológica, há peculiaridades nesses pacientes que ainda não estão totalmente endereçados tanto nos escores de risco embólico (p. e. CHADS, CHADSVAC) quanto nos de risco de sangramento (p.e. HASBLED) tradicionalmente utilizados para população geral, como a presença de distúrbios plaquetários, da coagulação, presença de metástases intra-cranianas, uso de quimioterapia, necessidade de procedimentos cirúrgicos com alguma frequência. Pela falta de estudos dedicados, isso acaba gerando alguma confusão em relação ao início e manutenção de anticoagulação nesses pacientes. Afinal, como balancear o risco trombótico e de sangramento nessa população?

Um pequeno estudo de registro publicado em 2020 consegue nos dar um insight nesse dilema. Avaliando 472 pacientes em tratamento oncológico, observou-se que 44% daqueles portadores de FA e que eram, em tese, considerados bons candidatos a anticoagulação (CHADSVAC >= 2 e HASBLED < 3) não haviam sido prescritos anticoagulante (embora apenas 18% dessa amostra tivesse plaquetas < 50 mil, por exemplo) (Figura 2).

Figura 2. Resumo do trabalho.

Em comparação a uma população geral, a taxa de não-anticoagulação, nesse perfil, tem valores mais baixos (em geral < 10%), o que demonstra um gap importante e uma necessidade de se aumentar os cuidados e otimização de terapia em uma população de risco elevado.

Em relação a terapia em pacientes oncológicos, podemos pontuar algumas peculiaridades, embora as diretrizes gerais sejam semelhantes às recomendações destinados ao púlico geral:

  1. Os anticoagulantes diretos (DOACs) vem ganhando cada vez mais espaço em relação a varfarina (assim como acontece na população geral). Essa mudança no sentido dos DOACs está ancorada no seu menor potencial de interação medicamentosa, sua posologia mais previsível, aliada a mesma capacidade de prevenir eventos embólicos e, eventualmente, menor potencial de sangramento (à exceção de pacientes com tumores do TGI com maior risco de sangramento, onde o uso da varfarina ainda parece fazer um pouco mais de sentido), conforme trabalhos comparando pacientes oncológicos versus não oncológicos dos grandes RCTs (ENGAGE, ARISTOTLE, ROCKET-AF) demonstram.
  2. Em pacientes onde se julga que o risco de sangramento é superior ao benefício da anticoagulação, pode-se lançar mão, após uma discussão individualizada, de dispositivos de oclusão de aurícula esquerda.
  3. Por fim, em relação a terapia de controle de frequência cardíaca, deve-se, na medida do possível, evitar o uso de bloqueadores de canal de cálcio não-diidropiridínicos (verapamil e diltiazem), pelo seu maior potencial de interação medicamentosa com os fármacos utilizados na quimioterapia.

Leitura sugerida:

  1. Jakobsen, C.B., Lamberts, M., Carlson, N. et al. Incidence of atrial fibrillation in different major cancer subtypes: a Nationwide population-based 12 year follow up study. BMC Cancer 19, 1105 (2019). https://doi.org/10.1186/s12885-019-6314-9
  2. JACC: CardioOncology – Patterns of Anticoagulation Use in Cancer Patients with Atrial Fibrillation and/or Atrial Flutter. J Am Coll Cardiol CardioOnc. 2020 Dec, 2 (5) 747–754
  3.  Eikelboom, JK e cols. Oral Anticoagulant Treatment in Patients with Atrial Fibrillation and Cancer Thromb Haemost 2020;120:194–196.
  4. Delluc, A., Wang, T.‐F., Yap, E.‐S., Ay, C., Schaefer, J., Carrier, M. and Noble, S. (2019), Anticoagulation of cancer patients with non‐valvular atrial fibrillation receiving chemotherapy: Guidance from the SSC of the ISTH. J Thromb Haemost, 17: 1247-1252. https://doi.org/10.1111/jth.14478
  5. EHRA/EAPCI consensus statement on LAA occlusion. EuroIntervention 2014;10-online publish-ahead-of-print August 2014

Sobre o Autor

Daniel Valente

Médico com residência médica em Clínica Médica pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e em Cardiologia Clínica pelo Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (InCor-HC-FMUSP). Especialista em Ecocardiografia pelo InCor-HC-FMUSP e pelo Departamento de Imagem Cardiovascular da Sociedade Brasileira de Cardiologia (DIC-SBC). Doutor em Cardiologia pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). Coordenador do Serviço de Ecocardiografia da ONE Laudos.

Deixe um comentário