Cardiologia Geral

Profilaxia secundária de Febre Reumática e a escassez de Pencilina G Benzatina no Mundo – quais alternativas ?

A febre reumática é uma doença de grande preocupação do médico cardiologista devido a seus efeitos devastadores no aparelho valvar cardíaco. Atualmente, é uma das doenças consideradas negligenciadas, inclusive nacionalmente, apesar de ainda existir uma grande população acometida por essa patologia.
Nos noticiários vem ganhando notoriedade desde 2014 por conta da dificuldade mundial em produção da medicação, por relato de escassez de matéria prima. A gravidade da situação chegou ao ponto de fabricante – Eurofarma – e a comercializadora – Supera RX – da principal marca da Penicilina G Benzatina no Brasil – a Benzetacil®- ter divulgado nota técnica incentivando a prescrição do ‘princípio ativo’ para que os pacientes pudessem procurar outros laboratórios fabricantes de outras marcas da penicilina.
A preocupação é grande uma vez que a penicilina é a uma opção barata e efetiva para o tratamento da prevenção secundária da febre reumática (PSFR), sobretudo nos pacientes com algum grau de sequela cardíaca, bem como dos doentes com sífilis, inclusive as gestantes. 
Levando em conta isso, trazemos ao post quais as recomendações atuais para PSFR e quais suas alternativas.

PROFILAXIA SECUNDÁRIA DE FEBRE REUMÁTICA

A PSFR consiste em administração de antimicrobianos no sentido de evitar que haja colonização ou infecção de orofaringe pelos estreptococcos beta-hemolíticos do grupo A de Lancefield (EBGA) e, com isso, novos surtos que possam a agravar o acometimento valvar já instalado. 
As opções são:
1ª opção:
Penicilina G benzatina: barata, efetiva, sem necessidade de uso diário e sem documentação de cepas resistentes.
A dose é de 1.200.000 UI em  > 20 kg e 600.000 UI em < 20 kg, com intervalos de aplicação a cada 21 dias e uso intra-muscular profundo, preferencialmente em região glútea.
Alternativas:
Caso sejamos afetados temporariamente por uma crise de desabastecimento ou em um paciente comprovadamente alérgico a penilicina, temos opções de antimicrobianos de uso oral:
Sem alergia a penicilina:
Penicilina V oral: 250 mg de 12/12h em uso contínuo 
Alérgicos a penicilina:
Eritromicina: 250 mg  de 12/12h em uso contínuo
Sulfadiazina: 1 g para > 30 kg e 500 mg para < 30 kg, dose 1 x ao dia em uso contínuo – não deve ser usada na gestação
Por quanto tempo devemos manter a profilaxia ?
O tempo de tratamento irá levar em conta a idade do paciente e qual grau de acometimento cardíaco o surto de febre reumática, conforme abaixo:
Tabela retirada das Diretriz Brasileiras para Diagnóstico, tratamento e prevenção da febre reumática

Há o que possamos fazer para reduzir a dor da aplicação da Penicilina ?

Sim. Pode-se fazer a diluição da penicilina junto a anestésico local -0,5 ml de lidocaína a 2% – para redução da dor no período pós aplicação da medicação. 
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Veja os links relacionados ao tema:
Nota técnica do Ministério da Saúde em resposta a Sociedade Brasileira de Infectologia. Disponível aqui
Nota do CFM, já em 2014, alertando sobre a crise de desabastecimento. Disponível aqui
Nota do comercializador da Benzetacil® orientado a prescrição do termo genérico para acesso a outros fabricantes. Disponível  aqui
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Leitura sugerida:
Diretrizes Brasileiras para o
Diagnóstico, tratamento e prevenção da febre reumática. Arq Bras Cardiol 2009; 93(3 supl.4): 1-18. Disponível aqui
Febre reumática: prevenção e tratamento. Sociedade Brasileira de Pediatria. Disponível aqui

Sobre o Autor

Daniel Valente

Médico com residência médica em Clínica Médica pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e em Cardiologia Clínica pelo Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (InCor-HC-FMUSP). Especialista em Ecocardiografia pelo InCor-HC-FMUSP e pelo Departamento de Imagem Cardiovascular da Sociedade Brasileira de Cardiologia (DIC-SBC). Doutor em Cardiologia pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). Coordenador do Serviço de Ecocardiografia da ONE Laudos.

4 comentários

  • O blog tá ótimo….uma dúvida que tenho sempre é sobre a conduta diante de um paciente adulto a partir da 4* década com diagnóstico de dupla lesão mitral "sugestiva" de etiologia reumática no qual foi necessário cirurgia, mas não há nenhum passado de surtos reumáticos ou quadros sugestivos….devo confiar na impressão do eco e do cirurgião qto ao Diagnóstico de etiologia reumática e assim submeter o paciente as injeções pro resto da vida?? Uma vez q podemos estar diante de uma degeneração mixedematosa……

    • Meu amigo Madson,

      Esse seu questionamento é de grande importância pois é um fato que acontece no nosso dia-a-dia e não está bem descrita em consensos (faremos inclusive um post sobre o assunto)

      A etiologia por ‘degeneração mixedematosa’, em geral, tende a ocorrer em doentes com prolapso mitral que evoluem para insuficiência da válvula através de lesão pura, sendo essa uma das principais etiologias de insuficiência mitral. A dupla lesão, nesse cenário, é mais rara, sendo pouco descrita.

      Ela ganha 'peso estatístico' sobretudo em países de melhor perfil econômico e em uma faixa etária mais idosa, sobretudo em indivíduos a partir de 5/6 década. Nessa população pode responsável por até 50% dos casos de insuficiência mitral.

      Outra característica interessante é que, na maioria dos casos, a lesão é leve a moderada, sendo o tratamento feito com medidas clínicas.

      Por sua vez, a cardiopatia reumática crônica (CRC) cursa quadro de dupla lesão mitral em até 42-45% dos pacientes, a depender da série estudada. Nesses casos, em geral, o componente de insuficiência > estenose. A população de predomínio é mais jovem, ficando a maioria nas primeiras 2 décadas de vida, com o mais velhos por volta dos 40-50 anos.

      Pelos critérios de Jones modificados pela Organização Mundial de Sáude (OMS – 2004), o diagnóstico de CRC poderia ser feito pela presença de lesão valvar – estenose mitral pura, dupla lesão mitral e/ou doença aórtica associada) com características ecocardiográficas/anatomopatológicas compatíveis, sem necessidade de nenhum exame adicional.

      Além disso, devemos lembrar que a cardite subclínica é uma entidade de grande prevalência, onde muitos casos de lesão valvar só são observados utilizando critérios ecocardiográficos. Essa situação chega a valores de 35%, o que mostra como apenas a utilização de critérios clínicos pode subestimar a doença. Contudo, levando em consideração a razoável dificuldade de se ofertar esse método diagnóstico para nossa população é muito comum de nos depararmos com indivíduos valvares que só acabam descobrindo sua condição em uma fase tardia, geralmente adultos jovens na 3/4 década. Nesses casos, o exame de imagem compatível será a chave para o diagnóstico e, assim, quando realizado por operador treinado, deve ser valorizado.

      Portanto, considerando:

      – indivíduo relativamente jovem, na sua 4 década de vida
      – morador de um país subdesenvolvido, onde a patologia reumática é endêmica e com políticas de rastreio e tratamento negligenciadas
      – história de lesão valvar grave, inclusive necessitando de troca valvar cirúrgica.
      – achados ecocardiográficos e aspecto cirúrgico sugestivos de sequela reumática
      – a necessidade de suspeita clínica direcionada para a identificação de surto de febre reumática, que, muitas vezes, faz com que o surto seja confundido com outras patologias da infância/adolescência e assim passar despercebida. Talvez por isso, muitas vezes, o doente não sabe caracterizar seu antecedente de saúde.

      Somos favoráveis a manutenção da profilaxia a cada 21 dias, de maneira vitalícia, na situação colocada.

  • Etiology, clinical features, and evaluation of chronic mitral regurgitation. Uptodate.com acessado em set/2015

    Natural history, screening, and management of rheumatic heart disease. Uptodate.com acessado em set/2015

    Nonarrhythmic complications of mitral valve prolapse. Uptodate.com acessado em set/2015

    Joseph N, Madi D, Kumar GS, Nelliyanil M, Saralaya V, Rai S. Clinical Spectrum of Rheumatic Fever and Rheumatic Heart Disease: A 10 Year Experience in an Urban Area of South India. North American Journal of Medical Sciences. 2013;5(11):647-652. doi:10.4103/1947-2714.122307.
    Disponível aqui: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3877438/?report=reader

    Peixoto, A e cols. Febre reumática: revisão sistemática* Rev Bras Clin Med. São Paulo, 2011 mai-jun;9(3):234-8 Disponível aqui: http://files.bvs.br/upload/S/1679-1010/2011/v9n3/a1983.pdf

    Rheumatic fever and rheumatic heart disease. WHO Technical Report Series. Disponível em:
    http://www.who.int/cardiovascular_diseases/resources/en/cvd_trs923.pdf

    Silent enemy in acute rheumatic fever: subclinical carditis. ürk Kardiyol Dern Arş – Arch Turk Soc Cardiol 2011; 39:41-46 PMID: 21358230 Disponível em: http://old.tkd.org.tr/english.asp?pg=:dergi/dergi_content&plng=eng&id=2277&dosya=198

    Araujo, FDR e cols. Prognostic value of clinical and Doppler echocardiographic findings in children and adolescents with significant rheumatic valvular disease. Annals of Pediatric Cardiology 2012 Vol 5 Issue 2. Disponível em: http://www.annalspc.com/temp/AnnPediatrCard52120-4294707_115547.pdf

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