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Vale a pena cardioverter uma fibrilação atrial de início recente?

Você atende um paciente jovem, sem comorbidades, que nega uso de medicamentos ou diagnóstico prévio de arritmias, com queixa de palpitações há cerca de 12 horas. Ao exame físico, apresenta–se estável hemodinamicamente, com bulhas cardíacas arrítmicas e pulso irregular, sem outras alterações significativas. O ECG está demonstrado abaixo:

Figura 1: observe o intervalo R-R irregular, QRS estreito e ausência de ondas P.

Qual conduta deve ser tomada nesse momento?

Inicialmente, baseado no quadro clínico e alterações do eletrocardiograma (ausência de ondas P, intervalo R-R irregular), podemos afirmar que trata-se de fibrilação atrial (FA) de início recente, estável hemodinamicamente. E agora, esse paciente deve ser submetido à cardioversão (elétrica ou química) imediata?

Até o momento, não existe resposta definitiva para essa questão. As últimas diretrizes da sociedade europeia sobre o tema, publicadas em 2016, sugerem que nesse caso a decisão entre realizar ou não a cardioversão deve ser compartilhada com o paciente.

Recentemente, foi publicado no New England Journal of Medicine (concomitante ao congresso do American College of Cardiology) o estudo RACE 7, que busca ajudar a responder essa questão. Trata-se de um estudo multicêntrico, randomizado, de não-inferioridade, no qual foram incluídos 437 pacientes maiores de 18 anos, sem história de FA persistente, que procuraram o serviço de emergência com quadro de FA de início recente (<36 horas), sintomáticos e estáveis hemodinamicamente. Os pacientes foram então randomizados entre a realização de cardioversão precoce ou controle medicamentoso de frequência cardíaca (FC). O desfecho primário avaliado foi a presença de ritmo sinusal após 4 semanas de tratamento. Os desfechos secundários incluíram a duração da visita índice ao serviço de emergência, complicações cardiovasculares e tempo para recorrência de FA.

A estratégia de escolha para cardioversão foi farmacológica, e foi preferencialmente utilizada a flecainida, um antiarrítmico do grupo IC. A cardioversão elétrica foi reservada aos pacientes submetidos à cardioversão farmacológica prévia sem sucesso, ou nas quais ela era contra-indicada. Para controle de FC, foram utilizados betabloqueadores, bloqueadores de canal de cálcio não-diidropiridínicos (verapamil, diltiazem) ou digitálico. Os pacientes do grupo “controle de FC” foram reavaliados após 48 horas da avaliação inicial e, caso a FA persistisse, submetidos à cardioversão. Todos os pacientes foram também avaliados quanto ao risco tromboembólico, e a anticoagulação iniciada quando indicado.

Após 4 semanas, verificou-se a presença de ritmo sinusal em 94% dos pacientes submetidos à cardioversão precoce, e 91% dos avaliados apenas para cardioversão tardia (p 0.05 para não-inferioridade). A reversão espontânea para ritmo sinusal nas primeiras 48 horas ocorreu em 69% dos pacientes do grupo “cardioversão tardia”. Houve recorrência de FA em 29% dos pacientes do grupo “cardioversão precoce”, e 30% no outro grupo. Não houve diferença na incidência de complicações cardiovasculares entre os dois grupos.

Fonte: Pluymaekers et al. N Eng J Med, 2019.

Afinal, qual deve ser a conduta para o paciente em questão?

Como quase tudo na medicina, o tratamento deve ser individualizado. Apesar de suas limitações, o estudo discutido acima nos mostra que a maioria dos pacientes jovens, com poucas comorbidades e primeiro episódio de FA apresenta reversão espontânea da arritmia já nas primeiras 48 horas, desde que controlados os seus fatores desencadeantes/perpetuantes. Em paralelo, nunca devemos esquecer a necessidade de avaliação do risco cardioembólico e de sangramento para todos os pacientes e, sempre que indicado, iniciar anticoagulação o mais precocemente possível.

Leituras sugeridas:

  1. Pluymaekers NAHA, Dudink EAMP, Luermans JG et al. Early or Delayed Cardioversion in Recent-Onset Atrial Fibrillation. N Eng J Med. DOI: 10.1056/NEJMoa1900353.
  2. Kirchhof P, Benussi S, Kotecha D, et al. 2016 ESC Guidelines for the management of atrial fibrillation developed in collaboration with EACTS. Eur Heart J 2016;37:2893-2962.

 

Sobre o Autor

Bernardo Rosário

Médico com residência médica em Clínica Médica pela Universidade Federal do Paraná e em Cardiologia Clínica pelo Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (InCor-HC-FMUSP).

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