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Cardiopatias na Gravidez – Como manejar?

A presença de doenças cardiovasculares em gestantes está crescendo graças a múltiplos fatores: ao aumento da prevalência dos fatores de risco cardiovascular na população, à elevação da idade em que as mulheres têm a primeira gestação e ao melhor manejo das cardiopatias congênitas. As doenças cardiovasculares são a principal causa de óbito não-obstétrico durante a gestação.

Até um terço das gestantes portadoras de cardiopatias usam medicações de uso contínuo que podem estar relacionadas com efeitos deletérios ao feto.

As alterações fisiológicas que ocorrem na gravidez podem alterar tanto algumas propriedades das medicações, como sua absorção, afetando tanto a mãe como o feto. Ter familiaridade com as alterações fisiológicas e com as particularidades da utilização dos fármacos nessa população é a chave para o correto manejo da gestante cardiopata.

No início da gestação, ocorre ativação do sistema renina-angiotensina-aldosterona pelo hormônio estrogênio, ocasionando retenção de sódio e água e um aumento de 40% do volume plasmático. Para acomodar esse volume maior de líquido, ocorre vasodilatação e remodelamento vascular, acarretando redução da resistência vascular sistêmica e pulmonar (relaxina, prostaciclina e óxido nítrico são responsáveis por esses efeitos) com consequente redução da pressão arterial. Durante a gravidez, ocorre aumento de 10-20 bpm da frequência cardíaca. Esses efeitos levam ao aumento de 30-50% do débito cardíaco. Durante o trabalho de parto, ocorre elevação de catecolaminas, aumento de frequência cardíaca e incremento aproximado de 500 ml de sangue na circulação a cada contração uterina. No pós-parto imediato, o incremento de volemia pela autotransfusão que ocorre pela placenta, e o aumento de retorno venoso garantido pela descompressão da veia cava inferior elevam a pressão venosa central. O débito cardíaco nesse momento chega a aumentar em até 80% comparado aos valores pré-gestacionais. As pacientes estão mais vulneráveis às complicações cardiovasculares durante o trabalho de parto e no pós-parto imediato devido às grandes alterações hemodinâmicas.

Todas essas alterações fisiológicas da gravidez normalmente são bem toleradas por gestantes hígidas, mas as portadoras de cardiopatia podem descompensar durante esse período.

Durante a gestação, a absorção dos fármacos por via oral é reduzida devido ao esvaziamento gástrico lentificado. Além disso, o uso de antiácidos e de ferro suplementar induz a quelação de medicamentos em meio de pH gástrico aumentado, provocando a redução na biodisponibilidade da medicação. O aumento do volume plasmático e do tecido adiposo, diminuição de albumina e de proteínas de ligação, aumento do clearance renal e da metabolização hepática acarretam, na maioria das vezes, na redução da concentração plasmática da droga e consequente redução do seu efeito.

Nos anos 60, o efeito teratogênico da talidomida resultou em enorme preocupação para a comunidade científica e para a população geral. O FDA (U.S Food and Drug Administration), em 1966, determinou a necessidade de estudos animais para as medicações utilizadas na gestação e, em 1979, criou a categorização “ABCDX” para classificar a segurança das medicações em gestantes. As categorias A (medicações seguras) e X (contraindicadas) eram facilmente interpretadas, mas as diferenças tênues e os erros em interpretação das categorias B,C e D fizeram com que, em 2015, o FDA criasse uma nova classificação, chamada PLLR (Pregnancy and Lactation Labeling Rule), que fornece informações detalhadas dos estudos já realizados para cada droga.

É importante lembrar que a maioria das informações relacionadas à teratogenicidade medicamentosa derivam de estudos com modelos animais, análises retrospectivas e relatos de caso. Como a organogênese ocorre durante o primeiro trimestre, esse é o período mais vulnerável. Entretanto, outras medicações podem ter efeitos deletérios em outros períodos, como os IECA.

A escolha entre a utilização ou não das medicações durante a gestação e lactação leva em conta o período da gestação, a gravidade clínica materna, a necessidade do uso do fármaco e os efeitos potenciais para o feto. O seguimento com equipe multidisciplinar é essencial no manejo das gestantes portadoras de cardiopatias para garantir a segurança do binômio mãe-feto.

Leitura Recomendada:

1-  Halpern e col. Use of Medication for Cardiovascular Disease During Pregnancy: JACC State-of-the-Art Review .J Am Coll Cardiol. 2019 Feb, 73 (4) 457–476

2- Avila e col. Posicionamento da Sociedade Brasileira de Cardiologia para Gravidez e Planejamento Familiar na Mulher Portadora de Cardiopatia – 2020  Arq Bras Cardiol. 2020; 114(5):849-942

Sobre o Autor

Afonso Dalmazio Souza Mario

Graduado em Medicina na Santa Casa de Misericórdia de Vitória - EMESCAM. Residência Médica em Clínica Médica pelo Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP) e Cardiologia Clínica pelo Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (InCor-HCFMUSP).

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