Como eu faço? Pronto-Socorro

Técnica de Passagem de Marcapasso Transvenoso a Beira-leito

Imagine-se numa situação de urgência em que você necessita realizar a passagem de um Marca-Passo Transvenoso (MPTV) em um paciente no seu hospital, seja no Pronto Socorro, na Enfermaria ou em uma Unidade de Terapia Intensiva.

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Pegue por exemplo, um paciente vítima de um infarto agudo do miocárdio com supra de ST de parede inferior que evoluiu com um Bloqueio Atrioventricular Total (BAVT). Você já seguiu o protocolo do Advanced Cardiac Life Support (ACLS), onde você já se propôs a realizar provas terapêuticas com Atropina, Dopamina ou Adrenalina, todas sem sucesso, e que o marca-passo transcutâneo não se encontra disponível ou não tem captura mecânica.

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A pergunta é direta: você sabe a técnica de passagem do Marca-Passo Transvenoso?

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Muitos médicos emergencistas, intensivistas e mesmo cardiologistas por vezes pecam no desconhecimento da técnica ideal de passagem de um MPTV de urgência a beira-leito e alguns desfechos desfavoráveis – totalmente evitáveis – podem ocorrer. Um estudo retrospectivo publicado no CHEST em 2018 com 360,223 pacientes que se submeteram à passagem de MPTV entre 2004 e 2014 retirados da base de dados do NIS (do inglês, National Inpatient Sample – base de dados de pacientes internados norte americano) mostrou uma maior taxa de tamponamento cardíaco e complicações de punção durante o procedimento em hospitais universitários (onde existem residentes em treinamento) e em pacientes super instáveis – daí a necessidade de saber bem o que fazer na hora da urgência.

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Existem três técnicas para passagem do MPTV na prática hospitalar:

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  1. Guiado por fluoroscopia – habitualmente na Sala de Hemodinâmica ou Centro Cirúrgico
  2. Guiado por eletrograma intracavitário com ou sem o auxílio do Ecocardiograma Transtorácico (EcoTT)
  3. Às cegas – técnica mais arriscada e mais propensa a erros, complicações e insucessos

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Aqui demonstraremos o passo-a-passo da técnica à beira-leito mais segura de passagem do MPTV quando não se tem à disposição a Sala de Hemodinâmica ou EcoTT com facilidade: a técnica guiada por eletrograma intracavitário. Vamos lá!

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Pré-procedimento:

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  1. Confirmar a indicação do procedimento: é importante ter certeza de que a passagem do MPTV está sendo realizada no momento ideal e no paciente que realmente tem necessidade, já que não é um procedimento isento de riscos (a base de dados que foi comentada anteriormente aponta para uma incidência de 0,6% de tamponamento cardíaco e 0,9% de pneumotórax hipertensivo, por exemplo). Bradiarritmias instáveis em que não se espera uma recuperação rápida com drogas cronotrópicas positivas ou que não respondem a MP transcutâneo são o maior exemplo. Outras indicações como os BAVTs idiopáticos antes do implante do MP definitivo, pré-procedimentos que envolvam alto risco de BAVT ou para o tratamento de tempestade elétrica por overdrive pacing, entre outros.
  2. Checar ausência de contraindicações: As contraindicações absolutas incluem infecção do sitio de punção, coagulopatia grave, trombos ou vegetações em válvula tricúspide/pulmonar. As contraindicações relativas incluem instabilidade elétrica (já que o cabo-eletrodo tem uma pequena chance de induzir taquiarritimias ventriculares durante a passagem), coagulopatias menos graves, cirurgia cardíaca recente e infecção de corrente sanguínea em atividade.
  3. Explicar o procedimento ao paciente e obter o termo de consentimento livre e esclarecido
  4. Preparar o ambiente: preparação é tudo. Você irá precisar de uma sala bem iluminada, de uma leito com altura programável, de mesa para apoio e de pessoas para te auxiliar – acredita-se ser necessário no mínimo 2 pessoas para o procedimento, porém o número ideal é de no 3 (o executor, um auxiliar paramentado e um auxiliar não paramentado).
  5. Preparar o material: quanto ao material, vamos lá: (1) Dois monitores (um para o ECG habitual e outro que irá servir como ECG intracavitário – este habitualmente consiste no desfibrilador que levamos para o leito como monitor adicional); (2) Kit de aventais/campos/instrumentais; (3) Kt do introdutor e Kit do MPTV (Figura 1); (4) Lidocaína 1 a 2% para anestesia local, junto com seringa, gazes e agulha; (5) Fio para sutura (Nylon 3.0); (6) cabo-eletrodo com ponta de jacaré (Figura 2 abaixo) – se houver falta deste material, pode considerar qualquer cabo-eletrodo de monitorização com ponta de metal; (7) bainha de ultrassom para punção, além do próprio ultrassom.

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Um dos vários Kits disponíveis para passagem de MP Provisório – o da figura acima é exemplificado da marca Biomedical.

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Procedimento:

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  • Escolha do sitio de punção: a veia jugular interna direita (VJID) é o primeiro sitio de punção a ser escolhido; em seguida, a veia subclávia esquerda (VScE) fica em segundo lugar (melhor que a subclávia direita e que a jugular interna esquerda devido à curva que o cabo-eletrodo do MP deverá realizar)
  • Degermação seguida de antissepsia do sitio de punção escolhido
  • Lavagem das mãos conforme a técnica asséptica, colocação de aventais e posicionamento dos campos cirúrgicos
  • Aqui, se você tiver acesso ao ultrassom para guiar a sua punção, vale colocar a “camisinha” conforme a técnica asséptica e localizar previamente a sua veia (vale principalmente para veia jugular interna, mas técnicas mais recentes já mostram ganho de sucesso na punção mesmo para veia subclávia).
  • Anestesia local com Lidocaína 1 a 2%
  • Punção pela técnica de Seldinger (idealmente guiada por ultrassom) para posicionamento inicialmente do introdutor (normalmente escolhe-se o de 5 ou 6 Fr de diâmetro), neste caso, seguindo a seguinte sequência: punção com agulha -> passagem do fio-guia -> retirada da r agulha -> passagem e retirar o dilatador nº1 -> passagem do conjunto [dilatador nº2 + introdutor] -> retirada do conjunto [dilatador nº2 + fio-guia] e manutenção do introdutor. Este chamado “introdutor” é um instrumento que permitirá a passagem do cabo-eletrodo do MP por dentro dele, e tem uma válvula unidirecional que impede refluxo de sangue (vide componente central da figura 1 acima).
  • Fixar o introdutor à pele com nylon 3.0
  • Passar ao cabo-eletrodo de MP por dentro da bainha transparente e “guardar” a bainha na ponta proximal do cabo-eletrodo
  • Introduzir, com a curva para a esquerda (em ambos os si tios de punção) o cabo-eletrodo do MP até cerca de 10-15 cm (lembre-se: cada marca preta no corpo do cabo-eletrodo tem 10 cm de distância entre si). Neste momento, você vai acoplar os “jacarés” dos cabos que estavam conectados no segundo monitor (habitualmente um desfibrilador conforme comentado acima) na ponta proximal do cabo-eletrodo, que já foi anteriormente conectado a um sistema conforme o da Figura 2 – dois jacarés no cabo vermelho e o jacaré verde no cabo preto, este como fio terra.

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Sugestão de como conectar os “jacarés” nas extremidades do cabo-eletrodo do MP transvenoso

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  • Neste momento, você deve introduzir calmamente o cabo-eletrodo e observar os traçados do eletrograma intracavitário que foi criado por esse esquema de conexões mostrado acima. A sequência que você deve observar é a seguinte: veia cava superior -> átrio direito -> ventrículo direito -> corrente de lesão (impactação no miocárdio). Veja a Figura 3 que é mais esclarecedora. Esta impactação habitualmente acontece entre 30-35mm (localização ideal: septo interventricular médio-apical) quando o sitio de inserção é a VJID ou 35-40 mm quando é a VScE, porém valores maiores ou menores podem ser encontrados a depender das dimensões do paciente, da dilatação das câmaras direitas e do seu local de punção (mais ou menos proximal na veia).

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Eletrograma intracavitário: (1) Atrio direito alto; (2) Atrio direito medio-baixo; (3) Ânulo tricpuspídio. (4) Ventrículo Direito; e (5) Corrente de lesão (“supra de ST”) após contato e impactação do cabo-eletrodo com endocardio do Ventriculo Direito.

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  • Conectar o gerador do MP e realizar os testes (Figura 4). Geralmente se começa com FC baixa, pouco acima da FC do ritmo do paciente (por exemplo a 50 bpm). Estimular à energia (ou output) máxima e avaliar eventual estimulação diafragmática (o paciente fica fazendo uma espécie de “soluços” sempre que o MP entra – se isso acontecer, você deve idealmente reposicionar o seu cabo-eletrodo já que provavelmente ele se encontra na parede posterior do VD, onde existe maior risco de perfuração) e ai você vai diminuindo até achar o limiar de captura – a recomendação é deixar programado 2-3 vezes acima do limiar de captura. Após este processo, você pode pedir para o paciente inspirar profundamente e tossir, e retestar o limiar para ter certeza que ele está bem impactado. Idealmente você deve testar também o limiar de sensibilidade e programar para 1/2 do valor encontrado (o teste do limiar de sensibilidade segue o mesmo raciocínio do teste de limiar de captura, porém na direção contrária). Mais detalhes quanto ao manejo dos geradores de MP provisório leia este outro post do temas.

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Modelos de GErador de MP Transvenoso das marcas Medtronic e St Jude (atual Abbott)

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  • Depois da impactação, você tem duas opções: (1) retirar o introdutor e fixar o cabo-eletrodo na pele com uma sutura tipo “bailarina” ou (2) manter o introdutor e correr a bainha transparente por todo o comprimento do cabo-eletrodo até o óstio do introdutor, de tal forma que o conjunto cabo-eletrodo + introdutor permaneça no paciente. A nossa recomendação é que, se você conseguiu um local de estimulação adequado, com visualização da corrente de lesão e com limiar baixo, você escolha a opção 1, que parece trazer mais estabilidade para o cabo-eletrodo conforme avaliações prévias (Figura 5).

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Sugestão de fixação com retirada da bainha do introdutor e fixação direta no cabo-eletrodo

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Pronto! Você acaba de passar o seu MPTV (revise as técnicas acima com este vídeo didático). Agora basta solicitar um Rx Tórax e checar a posição do cabo-eletrodo (lembrando: idealmente deve estar no septo interventricular médio-apical), registrar o procedimento em prontuário e se certificar de que o paciente não se movimente muito no pós procedimento (a fim de evitar complicações). Vale ressaltar que o limiar de captura deve ser testado diariamente, já que com frequência ele aumenta nos MPTV e pode haver necessidade de ajuste de energia. Os marca-passos transvenosos são procedimentos ponte para uma terapia mais definitiva (MP definitivo x ausência de necessidade de suporte cronotrópico), e o tempo máximo de duração recomendado é de poucos dias, com avaliação caso a caso.

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Referências:

  1. Metkus, T. S., Schulman, S. P., Marine, J. E., & Eid, S. M.. Complications and outcomes of temporary transvenous pacing: an analysis of over 360,000 patients from the National Inpatient Sample.
  2. http://www.biomedical.com.br/produto.php?Eletrodo-Tempor%C3%A1rio-de-Marcapasso-Externo—Endoc%C3%A1rdico=63
  3. Wald DA. Therapeutic procedures in the emergency department patient with acute myocardial infarction. Emerg Med Clin North Am 2001;19:451–67.
  4. https://www.medtronic.com/us-en/index.html
  5. https://www.abbott.com/abbott-stjudemedical-en.html

Sobre o Autor

Rodrigo M. Kulchetscki

Graduado em Medicina pela Universidade Federal do Paraná. Residência Médica em Clínica Médica pelo Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP) e em Cardiologia Clínica pelo Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (InCor-HCFMUSP).
Atualmente é Fellow em Arritmia, Eletrofisiologia e Estimulação Cardíaca Artifical na mesma instituição.

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