Medicina perioperatória

Revascularização miocárdica antes de cirurgia não-cardíaca: para quem?

Na avaliação clínica pré-operatória, temos o objetivo primordial de identificar potenciais riscos de eventos adversos relacionados ao paciente e à técnica cirúrgico-anestésico e, dentro do possível, atuar no pré, intra e pós-operatório no intuito de mitiga-los para que a margem líquida de benefício da intervenção (Margem líquida = benefício da cirurgia – potenciais complicações associadas ao procedimento em si) seja a maior possível. Afinal, não há sentido em se realizar determinado tipo de intervenção se os ‘custos’ da mesma são maiores que seu potencial benefício.

Com mais de 230 milhões de cirurgias realizadas em todo o mundo (3 milhões no Brasil), em uma população cada vez mais velha e com mais co-morbidades, é de esperar uma aumento de complicações cardiovasculares, dentre elas o infarto agudo do miocárdio (IAM) [1]. Notadamente, indivíduos que já possuam doença arterial coronariana (DAC), mesmo que assintomática, seriam um grupo com maior potencial de eventos e, assim, pior prognóstico.

Dado que a ocorrência de evento cardiovascular no pós-operatório é ruim para o paciente, a questão que a literatura tem tentado responder nas últimas décadas é se uma vez identificado um paciente de mais alto risco (através de escores clínicos dedicados, por exemplo) uma intervenção coronária ‘pré-cirúrgica’, de fato, seria capaz de mudar a ‘história’ desse paciente ou seria apenas mais uma intervenção capaz de postergar a cirurgia inicialmente proposta e, esse atraso, ser até mais deletério do que um ‘potencial’ benefício cardiovascular da intervenção? (Por exemplo, uma neoplasia que evolui com metástases no devido a demora para uma conclusão a respeito da sua avaliação cardiológica e, por isso, a cirurgia não consegue mais ter um objetivo curativo).

Na busca desse paciente em potencial, muitas vezes são solicitados exames para pesquisa e estratificação de doença arterial coronária (DAC) motivadas exclusivamente pelo fato de o paciente estar sendo submetido a procedimento cirúrgico. Exames esses que não seriam realizados em outro contexto.

O racional seria: as complicações cardiovasculares (IAM, por exemplo) estão associadas a pior prognóstico no contexto perioperatório e, assim, se eu detectasse um paciente de maior risco atuaria antes da cirurgia e, assim, ele teria uma maior chance de ter menos complicações cardiovasculares da sua cirurgia e, assim, melhor prognóstico.

Outra forma de analisar essa questão: necessito ‘mudar’ minha forma de raciocínio em relação ao tratamento (clínico e/ou intervencionista) da doença arterial coronária estável baseado no fato de que determinado paciente irá ser submetido a cirurgia? Para determinado paciente vale a pena pedir uma ‘cintilografia de perfusão miocárdica’ pré-operatório que não seria solicitada caso não existisse o fator cirurgia?

O maior estudo randomizado dedicado ao tema, o CARP [2], publicado em 2004, no NEJM, avaliou em 510 doentes, se revascularização profilática em pacientes que seriam submetidos a cirurgia vascular maior eletiva (aorta ou infra-inguinal), resultaria em melhores desfechos. Foram excluídos pacientes síndrome coronariana aguda, disfunção sistólica ventricular importante ou em contexto de urgência/emergência. Em termos gerais, a estratégia de revascularização quando comparada a um tratamento médico intensivo (AAS, estatina, beta-bloqueador, controle das doenças de base, pós-operatório em UTI) não resultou em benefício de mortalidade – em 2.7 anos – ou de eventos combinados (IAM, AVC, isquemia de membro), pós-operatórios em 30 dias, mas, resultou, SIM, em uma grande atraso para a realização do procedimento não cardíaco: 18 dias (no grupo sem intervenção coronária) versus 54 dias (no grupo intervenção), p <0,001.

Outros autores apresentam dados apontando em direção semelhante: encaminhar um paciente para revascularização com objetivo de diminuir risco de complicações cirúrgicas não parece ser o caminho [3-6].

Temos algumas razões possíveis [7]:

  1. Os IAM peri-operatórios não são ‘predominantemente’ do tipo 2, ou seja, associados apenas a uma aumento da demanda cardiovascular. Estudo em nosso meio avaliando comparando o perfil angiográfico/característica da placa coronária de pacientes com IAM peri-operatório em relação a pacientes com IAM por SCA e com DAC estável, demonstrou que a incidência de placas instáveis agudas associadas a lesões ‘de novo’ ocorrem em taxas tão altas quando a 50%[8]. Sabemos também que essas placas que instabilizam não são, necessariamente, as placas ‘graves’ e fixas que poderiam ser detectadas no pré-operatório. Estudos angiográficos evidenciam que uma quantidade razoável de lesões ‘culpadas’ não foram detectadas em exames pré-operatórios. Sendo assim, poderíamos até tratar ‘preventivamente’ o que ‘vemos’, mas se as lesões que causam infarto ainda não ‘existiam’ antes do procedimento como esse tratamento poderia resultar numa menor incidência de IAM?
  2. Nossa forma de avaliar a DAC, seja anatômica, seja por provas funcionais ainda não contempla, adequadamente, a fisiopatologia associada ao IAM peri-operatório. Uma cirurgia de revascularização miocárdica ou intervenção coronariana percutânea, não é capaz de prevenir o surgimento de novas lesões coronárias (‘de novo’), não trata o vasoespasmo, não corrige doença coronária difusa e distal e não atua de maneira eficaz no tratamento de desbalanço entre consumo e oferta de nutrientes ao miocárdio.
  3. Os procedimentos de revascularização também tem seu risco, tanto de IAM peri-procedimento como morte. Além disso, risco de sangramento (sobretudo quando da necessidade de dupla anti-agregação para procedimentos percutâneos) e o próprio risco relacionado a demora na correção da patologia cirúrgica não-cardíaca que motivou a solicitação do ‘risco cardiológico’. Exemplo prático, o paciente com fratura de fêmur que ficar 2-3 semanas aguardando conduta cardiológica e, nesse intervalo, faz embolismo venoso, complica com pneumonia associada cuidados de saúde, tem hipotrofia muscular, desenvolve delirium, úlceras de pressão, etc. Não seriam essas complicações não-cardiológicas e, muitas vezes, minimizadas, mais graves até do que um possível complicação cardiológica pós-operatória que estaríamos buscando prevenir?
  4. Muitas vezes não se considera o contexto da cirurgia. Se é um caso de emergência/urgência ou ‘time-sensitive’ (cirurgias que não precisam ser feitas em até 24h, mas não devem esperar semanas/meses) nossa janela de intervenção é curta. Nesses casos, fica ainda mais claro que quanto mais tempo de perde ‘adiando’ o procedimento, maior parece ser seu risco;
  5. Não se individualiza o paciente. Em pacientes idosos/muito idosos, já fragilizados, com baixa funcionalidade, múltiplas co-morbidades, candidatos a cirurgia de baixo risco ou aqueles não terão tempo de sobrevida para se beneficiarem de uma possível revascularização, em se tratando de doença estável. Nessa população a otimização do tratamento clínico e uma maior vigilância no peri-operatório parecem ser mais razoáveis.
  6. Uma enorme quantidade de exames cardiológicos é solicitada para pacientes que serão submetidos a procedimentos de ‘baixo risco’, apenas por serem considerados doentes de ‘alto risco’. Se ainda pode haver algum debate se pacientes de alto risco submetidos a procedimentos de alto risco tem algum benefício em revascularização, imagine, então, para pacientes que serão submetidos a procedimentos de menor porte e pouca duração de tempo[9].

A luz dos resultados que temos atualmente o mais sensato na avaliação cardiológica pré-procedimento devem seguir alguns passos:

  1. Determinar a rapidez com que o procedimento deve ser realizado: emergência, urgência, ‘time-sensitive’ ou eletivo.
  2. Determinar o risco intrínseco de complicações do procedimento cirúrgico.
  3. Determinar os riscos do paciente (cardiológico, pulmonar, renal, embólico, delirium, etc).
  4. Detectar se o paciente não está numa situação de emergência muitas vezes requerendo um tratamento cardíaco antes da cirurgia não cardíaca (síndrome coronariana aguda, bradi ou taquiarritmia com instabilidade, valvopatia importante sintomática, insuficiência cardíaca descompensada grave).
  5. Realizar um tratamento medicamentoso otimizado de acordo com as patologias identificadas no pré-operatório (HAS, DM, DAC estável, insuficiência cardíaca, etc), iniciando medicações, como AAS e Estatina, quando pertinente.
  6. Conversar com cirurgião e anestesista sobre mudanças pertinentes em seu manejo operatório baseado nos riscos identificados.
  7. Certificar-se que o paciente tem clara noção dos benefícios e potenciais complicações esperadas para determinado procedimento (isso faz ainda mais sentido em pacientes muito idosos, com expectativa de vida limitada).
  8. Solicitar vaga de terapia intensiva, monitorização eletrocardiográfica e com troponina pós-operatórias nos considerados de alto risco cardiovasculares e, mais do que isso, manter um alto índice de suspeitação para que, em surgindo alguma complicação, que seja iniciado um tratamento no menor tempo possível.
  9. Indicação de revascularização coronária ‘profilática’ não deve, salvo alguma particularidade, ser indicada no pré-operatório de cirurgia eletiva. Inclusive, mesmo em pacientes com DAC estável e com indicação de abordagem de sua doença coronária (lesão de tronco, doença bi-triarterial com acometimento de descendente anterior, pacientes com disfunção ventricular), a depender do procedimento não-cardíaco (sobretudo os de baixo risco) podem ser submetidos ao tratamento não cardiológico antes do procedimento cardíaco, desde que com a devido acompanhamento e o tratamento invasivo da doença coronária ser postergado para um segundo momento.

Essa conduta está em linha com que falam as diferentes diretrizes a respeito do tema:

ACC/AHA Guideline on Perioperative Cardiovascular Evaluation and Management of Patients Undergoing Noncardiac Surgery (2014)[10]:

  1. A revascularização miocárdica pré-operatória antes de cirurgia não cardíaca está recomendanda nas circunstâncias onde seria recomendada de acordo com as diretrizes para doença coronariana estável. Grau de recomendação I, Nível de evidência C.
  2. Não se recomenda que a revascularização coronariana de rotina seja realizada para fins exclusivos de diminuir eventos cardíacos perioperatórios. Grau de recomendação III (NÃO FAZER), Nível de evidência B.

ESC/ESA Guidelines on non-cardiac surgery: cardiovascular assessment and management (2014) [11]:

  1. Revascularização coronária profilática de rotina antes de procedimentos considerados de baixo-intermediário risco em pacientes com DAC conhecida não é recomendada. Grau de recomendação III, Nível de evidência B.

III Diretriz Brasileira de Avaliação Cardiovascular Perioperatória  da Sociedade Brasileira de Cardiologia (2017) [12]:

  1. Pacientes com indicação de revascularização do miocárdio, independentemente do contexto perioperatório, em programação de operações não cardíacas eletivas. Grau de recomendação I, Nível de evidência C.
  2. Realizar revascularização miocárdica rotineira com o objetivo exclusivo de redução de eventos cardíacos perioperatórios. Grau de recomendação III (NÃO FAZER), Nível de evidência B
  3. Realizar revascularização miocárdica em pacientes com necessidade de operação não cardíaca de emergência, independentemente da gravidade dos sinais, dos sintomas e do grau de obstrução coronária. Grau de recomendação III (NÃO FAZER), Nível de evidência C.
  4. Realizar revascularização miocárdica em pacientes com grave limitação prognóstica por condições extracardíacas, em quem se planeja procedimento cirúrgico não cardíaco paliativo, como gastrostomias, derivações digestivas, traqueostomias etc. Grau de recomendação III (NÃO FAZER), Nível de evidência C.

* Fonte da imagem destaca na chamada do post: Stroke Rates Following Surgical Versus Percutaneous Coronary Revascularization, 

Leitura sugerida:

  1. Gualandro, D.M., et al., Acute myocardial infarction after noncardiac surgery. Arq Bras Cardiol, 2012. 99(5): p. 1060-7.
  2. McFalls, E.O., et al., Coronary-artery revascularization before elective major vascular surgery. N Engl J Med, 2004. 351(27): p. 2795-804.
  3. Fleisher, L.A., The Value of Preoperative Assessment Before Noncardiac Surgery in the Era of Value-Based Care. Circulation, 2017. 136(19): p. 1769-1771.
  4. Smilowitz, N.R. and J.S. Berger, Perioperative Management to Reduce Cardiovascular Events. Circulation, 2016. 133(11): p. 1125-30.
  5. Garcia, S. and E.O. McFalls, CON: Preoperative coronary revascularization in high-risk patients undergoing vascular surgery. Anesth Analg, 2008. 106(3): p. 764-6.
  6. Kertai, M.D., Preoperative coronary revascularization in high-risk patients undergoing vascular surgery: a core review. Anesth Analg, 2008. 106(3): p. 751-8.
  7. Eagle, K.A. and H.S. Gurm, We were fishing for TROUT and we caught a CARP: musings on perioperative management in an age of enlightenment. Circ Cardiovasc Qual Outcomes, 2009. 2(2): p. 61-2.
  8. Gualandro, D.M., et al., Coronary plaque rupture in patients with myocardial infarction after noncardiac surgery: frequent and dangerous. Atherosclerosis, 2012. 222(1): p. 191-5.
  9. Ranasinghe, P., et al., Preoperative testing in elective surgery: Is it really cost effective? Anesth Essays Res, 2011. 5(1): p. 28-32.
  10. Fleisher, L.A., et al., 2014 ACC/AHA guideline on perioperative cardiovascular evaluation and management of patients undergoing noncardiac surgery: executive summary: a report of the American College of Cardiology/American Heart Association Task Force on Practice Guidelines. Circulation, 2014. 130(24): p. 2215-45.
  11. Kristensen, S.D., et al., 2014 ESC/ESA Guidelines on non-cardiac surgery: cardiovascular assessment and management: The Joint Task Force on non-cardiac surgery: cardiovascular assessment and management of the European Society of Cardiology (ESC) and the European Society of Anaesthesiology (ESA). Eur J Anaesthesiol, 2014. 31(10): p. 517-73.
  12. Gualandro, D.M., et al., 3rd Guideline for Perioperative Cardiovascular Evaluation of the Brazilian Society of Cardiology. Arq Bras Cardiol, 2017. 109(3 Supl 1): p. 1-104.

Sobre o Autor

Daniel Valente

Médico com residência médica em Clínica Médica pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e em Cardiologia Clínica pelo Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (InCor-HC-FMUSP). Especialista em Ecocardiografia pelo InCor-HC-FMUSP e pelo Departamento de Imagem Cardiovascular da Sociedade Brasileira de Cardiologia (DIC-SBC). Doutor em Cardiologia pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). Coordenador do Serviço de Ecocardiografia da ONE Laudos.

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